OS NOSSOS ESCRITOS

TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

NATAL

24 de Dezembro

Véspera de Natal. Mal posso esperar.
Não sei porque gosto tanto do Natal. Talvez pela ceia, os doces e as prendas.
Cá em casa somos 10 irmãos . Só há prendas muito pequeninas e são só para as meninas.  Este ano somos só 3 que a Natália está em casa do tio Carreço.
Antes de virmos dormir lá alinhámos os sapatos na chaminé.
Avistámos no escritório uma grande caixa de cartão muito bem fechada mas tivemos medo de a abrir.
Subi de má vontade para o quarto com as minhas irmãs e preparo-me para uma noite sem sono.

25 de Dezembro

Nunca me vou esquecer deste Natal.
Depois de uma longa espera, alguma claridade assoma pela janela e diz-me que está a nascer o dia 25. Só aí temos ordem de descer até à cozinha. Acordo as minhas irmãs e precipitamo-nos escada abaixo, atravessamos o quintal (está um frio de rachar e nós em camisa de dormir...) e ali estão, alinhados na chaminé, 8 ou 9 sapatos todos com alguma coisa dentro:
Nos sapatos enormes dos meus irmãos há apenas umas cascas de laranja muito enroladinhas ou uns carvões roubados aos tições da lareira.
E nos nossos? Umas miniaturas de tabletes de chocolate num atado apertado por uma fitinha de seda colorida e uns brinquedos que nos enchem os olhos. Estava ali a explicação da caixa mistério. Brinquedos e jogos a que faltavam peças e que vêm da loja do meu tio Chico porque já não têm venda. Mas no meu sapatinho está mais qualquer coisa do que nas minhas irmãs.
O dono da farmácia Costa, que gosta muito de mim, deixou-me uma prenda de Natal.
Perante a inveja das minhas irmãs desembrulhei o pacote e de lá saíu a mais linda boneca que eu já vi.
Não cabia em mim de contente e durante todo o dia não mais a larguei.
Depois do jantar reunimos-nos todos à chaminé à volta do lume de chão. E lá estou eu com a minha prenda de Natal preferida. O quentinho da lareira sabe- me bem, aquece-me as faces. Embora proibida de o fazer, agarro a tenaz para mexer as brasas. Gosto de ver as fagulhas que se levantam logo que lhes chego. A minha mãe ralha, largo a tenaz e levanto-me. Um clarão enorme, chamas azul esverdeadas levantam-se e só após alguns minutos percebo que já não tenho boneca... Era de celulóide e bastaram uns segundos para ser consumida pelas chamas. Choro desesperada . Sei que por muitos anos que ainda viva, nunca mais terei desgosto comparado com este que estou sentindo agora.



-Milena Falcato

terça-feira, 19 de novembro de 2013

CARLITOS

Éramos 10 irmãos na nossa casa. A minha madrinha, que não podia ter filhos, pediu aos meus pais que me deixassem ir morar com eles. Nunca soube ao certo que idade teria mas devia ser ainda bebé.
Vivi em casa dos meus padrinhos até aos seis anos e meio como filha única muito mimada principalmente pelo meu padrinho. O pior mesmo era ser filha única e não ter companhia para a brincadeira.
A certa altura descobri, duas ou três portas abaixo na minha rua, a única criança que ali morava além de mim. Carlinhos era o seu nome  e ainda hoje o recordo com imensa saudade e uma raiva enorme de o ter deixado morrer sem o tentar rever.
O Carlinhos, um ou dois anos mais velho, tinha o dom especial para inventar brincadeiras que nos habilitavam a uns bons açoites.

História número um :
O pai era dentista e precisava de sossego, a mãe não nos queria a atrapalhar na cozinha e,  para nosso deleite,  mandava-nos para o quarto de casal que era a maior divisão da casa e onde podíamos brincar à vontade.
Assim que entrava queria logo saber qual era a brincadeira do dia .
Nesse dia, como sempre aliás, já a tinha estudada.
- Hoje vamos brincar aos circos. Ora os circos têm um teto de pano e ele já tinha estudado como o fazer. Tirou  colcha da cama e tentou estendê-la nos quatro ferros mas era pesada e caía. Tirámos as bolas de cobre que encimavam cada um mas escorregava na mesma. Então, com muito esforço, tentámos furar os ferros nos quatro cantos da colcha e acabámos " a obra " com o auxílio duma tesoura...
O que nós nos divertimos! Houve acrobatas, malabaristas, palhaços e muita muita risota que acabou por chamar a atenção da mãe e calcula-se o que foi .
Cada um para sua casa para lhe ser aplicado o respetivo castigo...
Para nós era igual porque se repetia todos os dias...

História número dois:
Eu tinha umas lindas tranças que o meu padrinho adorava. A minha madrinha
era grande admiradora da Shirley Temple e do seus  caracóis. Não descansou enquanto não me cortou as tranças e me encheu  a cabeça de caracóis.!
Para melhor os moldar, apartava-me grande parte dos cabelos no cimo da cabeça e, com um gancho que se usava na altura,  enrolava-o todo muito bem fechando depois o gancho a prender todo o rolo.
E foi neste preparo que cheguei a casa do Carlinhos. Logo ali teve a brilhante ideia de irmos brincar aos cabeleireiros.
Foi à cozinha tirar uma toalha que me atou ao pescoço  e uma tesoura que conseguira surripiar.
Com uma mão agarrou no gancho e õcom a outra, ainda que com alguma dificuldade, cortou rente todo aquele cabelo que estava preso no gancho. Calculo hoje o susto e desgosto da minha madrinha quando me viu aparecer em casa com uma careca que apanhava todo o cimo da cabeça...
Lá se foi, e da pior maneira, o sonho de ter em casa uma Shirley Temple

História número três:
Eu tinha brinquedos caros e o meu padrinho já não sabia o que me dar.
Naquele dia fora a Lisboa e trouxera-me uma boneca de cartão muito grosso.
Teria uns 40 cm de altura e  um pedestal em Madeira que a mantinha de pé. Os olhos muito grandes mexiam e apertando a barriga chorava. Tinha depois vestidos, sapatos, chapéus, roupa interior, enfim toda a espécie de acessórios que se possa imaginar.
Mal tive tempo de desembrulhar o presente corri a casa do meu amigo pois naquele dia teríamos um brinquedo que nos manteria activos por muito tempo porque havia muito que vestir e despir à Bonecao
Depressa se cansou e surgiu-lhe uma idéia melhor:
- Hoje vamos brincar aos jantarinhos!
Foi buscar uma panela, umas tesouras, umas facas, umas toalhas a fazer de aventais e estavam os chefes cozinheiros prontos a começar o dia...
Começou pelo fato que, como era de cartolina ainda que forte, conseguíamos cortar com a tesoura. Com muito trabalho lá conseguimos enfiar tudo em bocadinhos dentro da panela.
Até aqui tudo bem (mal) ! Mas hei-nos chegados à boneca propriamente dita que era muito grossa para a tesoura. Teve que ir buscar uma faca de serrilha e, mesmo assim, foi com um enorme  esforço que juntámos uns três bocados à sopa que já estava na panela. Não sei se chegámos a comer a sopa mas "outra sopa " me esperava em casa e com muita razão...
Ainda me recorda o desgosto de não ter sequer chegado a brincar com a minha linda boneca...
Contando que já se passaram uns 75anos dada a qualidade do brinquedo, não  deve ter sido nada barato.

-Milena Falcato   (Novembro 2013)

A CASA DE JANTAR

Antes da construção do primeiro andar a casa de jantar era na divisão que fica agora debaixo da escada.Tinha três portas. Uma delas, grande e pesada, dava para o quintal e nem sempre estaria fechada pois tinha que dar serventia à cozinha. Vindo da rua, entrava-se primeiro numa pequena casa de entrada que dava diretamente  para a casa de jantar assim como o corredor e tudo isso junto tornavam aquela divisão desagasalhada. Não consigo visualizar o teto antes da escada ser feita. Não admira pois pouco tempo lá vivi dado que, nesse tempo, estava em casa dos meus padrinhos.
No entanto há uma recordação recorrente quanto a essa 'casa de jantar'.
Como já disse antes, vivi com os meus padrinhos até aos seis anos e meio, altura em que foram para Angola.
Todos os domingos o meu primo Constantino vinha levar-me de visita a casa dos meus pais. Na minha lembrança calhava sempre na hora de almoço. A mesa era enorme para dar assento a uma família numerosa como a nossa. Para além dos meus pais e nove irmãos havia sempre tios ou primos de Casa Branca ou amigos da casa.
Eu entrava e encostava-me timidamente à parede em frente da mesa , agarrava com muita força a mão do meu primo e dali não arredava um passo. É natural que tivesse que ir falar aos presentes mas, na minha imaginação, só me vejo como espetadora duma qualquer mesa de restaurante cheia de pessoas que não me diziam respeito e com as quais eu não tinha nada a ver. Como se ali não conhecesse ninguém. O que eu queria era libertar-me rapidamente daquela situação. Tornava e tornava a apertar a mão do Constantino e a puxá-lo até que atendendo à minha insistência lá começávamos as despedidas e mais uns instantes e estávamos fora e com tempo para ainda dar um passeiozinho antes de me entregar em casa.
Lembro- me que mais tarde tive alguma dificuldade em habituar- me a comer  naquela mesa cheia de gente e até a estar em família. Aquela não era a minha casa e as saudades do meu padrinho doíam ainda. Era uma filha única que de um dia para o outro tinha que aceitar 9 irmãos. Mas as crianças têm um grande poder de adaptação e depressa me senti integrada.
Lembro-me dos almoços de sábado em que as coisa se complicavam. Havia sempre família da Casa Branca: tia  Alice e marido (tinham lá o filho o meu amigo Constantino) , tia Bárbara, primo Perninhas, prima                Marnoto que trazia um problema qualquer a resolver com um advogado e entre mais uns rtantos a Maria  Amélia mãe da Zuzu. Era muito divertida mas ficava um pouco intimidada no meio de tanta gente. O Aníbal para a arreliar gritava-lhe lá do seu lugar: ri-te Amélia!!! E logo ela se escangalhava a rir e com ela toda a mesa.
Claro que nem todas as semanas se reunia tanto pessoal mas as refeições sempre foram uma festa. Sempre tivemos liberdade para rir e falar à mesa..
Uma vez que o primeiro andar foi construído, a casa de jantar passou para o quarto dos meus pais que era uma dependência maior. Aí já estava também o meu tio Chico que impunha ou queria impor algum respeito à mesa. Mais dois empregados da oficina que também lá comiam, a costureira, e os genros e noras e filhos que foram sugindo era sempre um banquete. Diz-se que onde comem dois comem três mas muito mais fácil é quando há quinze comerem vinte... Havia sempre comida que chegasse para mais quatro ou cinco.
O meu irmão mais velho andava a estudar em Lisboa e quando vinha gostava de pôr a escrita em dia como se diz e queria silêncio para se fazer ouvir.
  Um dia compraram para a oficina um engenho de furar. A Adélia deu-lhe no goto o nome do objeto e cada vez que eu lho dizia baixinho ou o Armando o mencionava desatava a rir. Tanto riu que ele sai furioso da mesa, agarra-lhe num braço e foi pô-la lá fora no quintal talbez com algum açoite à mistura...
Indiferente ao choro e gritos dela a bater com toda a força na janela, lá continuou tranquilamente a a perorar sobre o 'engenho de furar'...
Este é um episódio entre muitos, muitos outros passados aqui nesta casa de jantar.
Pôr aquela mesa era uma tarefa que levava algum tempo. Trabalhou lá em casa uma rapariga do campo que estava a servir  pela primeira vez. No dia da entrada ao serviço mandou-a a minha mãe pôr a mesa. Quase na hora de almoço a minha mãe vendo que ela nunca mais aparecia, gritou-lhe da cozinha:
-Floripes, já puseste a mesa? Ao que responde de lá:
-Aí senhora nã me entendi com isto. Olhe, eu pus tudo em riba e quem quiser que puxe!
E lá estava em cima da toalha, única tarefa que conseguira finalizar, três ou quatro rimas de pratos, uma grande porção de copos e um enorme monte de talheres à espera de quem os puxasse...
Ali casei eu, a Adélia, a Olga, a Natália, o Quím, o Dâmaso, o Jaime e a minha filha Guida. Nessas alturas a casa de jantar mostrava-se insuficiente e era preciso pôr algumas mesas noutras divisões para acomodar tanta família e convidados.
Que saudades das ceias de Natal e Consoada ali passadas!
Também recordo aquela mesa sempre posta todos os três dias de  Carnaval onde abancavam grupos de mascarados e não só, trazidos pelo Aníbal ou pelo Jaime.
Enfim, esta é realmente a divisão da casa que mais e melhores recordações me traz à memória.


-Milena Falcato

O MEU QUARTO

Não seria muito grande e, talvez por isso, sentia-me lá muito aconchegada.
O meu padrinho encomendou a um bom artista de Estremoz a decoração do quarto. Foi assim que eu fiquei com um quarto de sonho muito lindo .
Todas as suas paredes ficaram repletas de figuras do Walt Disney em ponto grande. Miquey,  Donaldo e sobrinhos, Pateta, Popey e Margarida e mais alguns que não me lembra passaram a fazer parte das minhas noites.Foram todos os que lá couberam.
Ninguém tinha um quarto tão lindo como o meu!
Mesmo assim havia ocasiões em que eu detestava ficar no quarto. Era na hora da sesta que a minha madrinha me obrigava a dormir. Metia-me na cama e fechava a porta para eu não me escapulir.
Mas a necessidade é mestra de engenho! Depois de alguns minutos de silêncio e quando ela já me julgava ferradinha, abria as portadas da sacada, levava para lá alguns brinquedos e uma vez fora do quarto tornava a fechar as portadas e aí tinha pela frente uma bela tardada de brincadeira. Para melhor os meus vizinhos da frente que já sabiam que aquela hora eu estava em transgressão, metiam-se comigo e ajudavam-me também a passar melhor o tempo. Eu tinha que falar baixo não fosse a minha madrinha ouvir e descobrir a marosca.
   E ali ficava até que chegasse a hora de acordar e tudo era reposto pela ordem de partida. A janela era fechada e tornava a meter-me na cama até a minha madrinha chegar para me "acordar"...


-Milena Falcato

A DONA JOANA

Tive alguma dificuldade em escolher a pessoa sobre quem iria escrever tantas foram as que passando pela minha vida muito me marcaram para o bem e para o mal.
Escolhi falar da D. Joana onde me hospedei na minha passagem por Évora.
O meu pai decidiu que as suas três filhas mais novas seriam professoras primárias como as do seu primo Paulo de quem era grande amigo.
Decidiu e não se admitiam dúvidas. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Mesmo assim, resisti até ao fim.
De manhã a minha mãe mandou-me levantar para apanhar o combóio para Évora. Resolvi que não havia de sair da cama e quando ela me quis puxar agarrei a roupa e o colchão e foi tudo parar ao chão.
Não tive mais remédio senão despachar- me para chegar a horas. Durante toda a viagem chorei que me fartei...
Chegada a Évora, saí do combóio e ali estava eu com uma mala quase do meu tamanho e sem fazer a mais pequena ideia onde ficava a casa onde ia ficar.
Mal sabia eu o que me esperava! Na mala tinha metido apenas a roupa indispensável, ( só regressaria no Natal...) e dado que era uma leitora compulsiva, acabei de a encher com livros. Era uma mala enorme, de cartão e ninguém faz uma ideia como pesava. Pus-me a caminho perguntando a quem passava como se ia para a Zona de Urbanização número 1. Muito raramente lá havia alguém que conhecia, talvez por morar para aqueles lados...
Com os livros a mala tinha ficado pesadíssima e não sei como consegui chegar a casa com ela.
A dona da casa, a D. Joana Cabeça dos Reis, era uma senhora de mediana estatura, com o cabelo castanho grisalho apanhado atrás. Não  era bonita mas a sua simpatia extrema fazia parecê-lo. Tinha um rosto para o comprido, queixo ligeiramente lançado para a frente com uma leve barba que nunca cortou. Ao falar tinha um tom algo pretencioso coisa que ela , de todo, não era.
Era mais uma maneira de explicar tudo muito bem explicadinho de uma maneira muito pessoal.
Sempre de preto, dizia que não era luto. Tivera uma filha  de uns sete ou oito anos que foi encontrada pelas irmãs morta na cama. Foi um desgosto que a marcou para sempre embora nunca lhe tenha ouvido uma palavra sobre o assunto.
Era uma pessoa muito especial, com uma imaginação que lhe fazia superar a falta de tudo a que estava habituada desde mobília até utensílios de cozinha .
Estava em Évora provisoriamente apenas para acompanhar as filhas enquanto ali estudavam. A filha mais nova, a Felisberta, ficou em Estremoz a acabar o Colégio e hospedada em nossa casa numa troca proveitosa para ambas.
A Mãe  Joana, como eu carinhosamente lhe chamava, era a mestra do desenrasca. Faltava-lhe rolo da massa para fazer pastéis de massa tenra?Eu faria logo qualquer outra coisa mais simples a substituir mas ela não desistia com facilidade. Uma garrafa resolvia o assunto e foram os pastéis melhores que eu já comi onde a carne do recheio, muito bem temperado, tinha sido cortada à faca à laia de máquina de picados que ficara em Sousel.
Na segunda feira  de Páscoa despovoava-se Évora para se ir comer o borrego ao campo. Logo de manhã fomos acordadas para sair da cama e ir cumprir o ritual. Levou-nos até uma herdade nos arredores. Aí abancámos, toalha no chão, farnel em cima, por enquanto ainda fechado em caixinhas.
Uma volta pela herdade levou-nos a um rebanho de cabras que estava a ser ordenhado. Eu, que detestava leite, vi-me obrigada a provar e ainda hoje conservo na memória o gosto quente e adocicado do leite acabado de ordenhar. Nesse tempo ainda não se falava em febre aftosa...
 Mais tarde, a hora muito desejada do lanche, chegou por fim.
O abrir das caixinhas foi um espetáculo! De lá saíram entre muitos outros petiscos os deliciosos pastelinhos e uns biscoitos de chorar por mais...
E como é que ela os fizera se nem forno tinha ? Nada mais simples : foi a uma mercearia pedir uma lata de bolachas das grandes, fez-lhe uns furos dum lado e doutro,  ligou-os com arames, umas brasas por baixo e aí estava um forno com porta e tudo, pronto para cozer uns bolinhos ou fazer um assado como algumas vezes aconteceu.
Nunca comi tanto e tão bem como naqueles dois anos que lá passei. Era tudo tão saboroso que ninguém podia resistir. Até porque ela não deixaria...
Depois de uma refeição mais que farta, lá vinha o chazinho de folha de limoeiro(nunca mais bebi...) que, dizia ela, era para rebater. Mas, não se podia beber assim um chá sem nada a acompanhar. Então aparecia na mesa umas enormes rodas de um bucho, especialidade trazida de Niza pelo dono da casa.
A mãe Joana sempre foi muito amiga de surpresas e mistérios. Um dia ao sentarmo-nos à mesa estranhámos um grande prato com uma enorme porção de bananas, mas descascadas . Explicação dela : hoje no caixote do lixo  da da governada do menino Eduardinho estavam estas bananas assim descascadas. Aos nossos trejeitos de horror responde muito depressa : não tenham nojo. Estavam assim muito limpinhas em cima dum guardanapo de papel. Sabem que a senhora é um vaso de asseio!  Tanto disse que acabámos por comer todas as bananas.
Alguns meses depois quando já ninguém se lembrava do episódio, surge com um belíssimo licor de banana a acompanhar uns bolinhos que tinha feito.
E foi preciso dar ela uma deixa para recordarmos as bananas da vizinha...
Estas pequenas partidas faziam a sua felicidade.
Perto dali havia uma casa onde estavam hospedadas umas colegas. Quando calhava a ir lá a horas do lanche, ficava estasiada e cheia de inveja pois cada uma tinha em frente uma bandeja com um grande copo de leite com chocolate, (coisa de eu até nem gostava) e um prato com uma enorme fatia de pão cortada a toda a largura de um pão de quilo, barrado com uma farta camada de marmelada. Ora nós não tínhamos aquelas mordomias mas podíamos comer até muito mais do que aquilo pois tínhamos acesso a tudo o que nos apetecesse. Se ela soubesse disto ficaria zangada e com muita razão.
Foi realmente uma mãe para mim e para todas as  que por lá passaram .
Só ela para me fazer passar aqueles dois anos horríveis dum curso que fui forçada a seguir.
Obrigada por tudo Mãe Joana!!!


-Milena Falcato

A ESCADA

Era bastante perigosa a escada que nos levava à rua. Tinha uns degraus muito altos e uma inclinação que a tornava difícil para minha idade e tamanho. Sempre que a descia ou era acompanhada ou ouvia uma série de recomendações que eu fazia por não ouvir pois já me achava muito crescida para ouvir conselhos.
Por ela descia todos os dias em que me conseguia escapulir para ir brincar com o Carlinhos, meu único amigo, que morava uns metros abaixo da minha casa. Era com grande alegria que galgava os degraus deixando para trás os gritos da madrinha que fosse devagar, que ia cair...
Pior era quando os subia de regresso pois quase sempre me esperavam uns açoites, bem merecidos por sinal porque, muitas vezes a mãe dele já se tinha   adiantado a vir contar à minha madrinha as asneiradas em que tinham terminado as nossas brincadeiras. Muito nos divertíamos nós e que saudades eu guardo do meu amigo Carlinhos...
Eu era sonâmbula e uma noite ouvi como se verdade fosse, a minha madrinha chamar-me e dizendo para me apressar para irmos sair.
Muito obediente desta vez, saí da cama, bem enrolada nos cobertores e dirigi-me para a escada. Ali chegada não existiram degraus e só me lembro de me --encontrar no patinho cá em baixo ainda com os cobertores atrás e os meus padrinhos de roda de mim muito assustados sem saberem como tinha eu ali ido parar. Valeram-me os cobertores que me fizeram escapar a resultados muito sérios ou até à morte. Um galarô que toda a noite cantou e por aqui se ficou a aventura sonambulesca...


-Milena Falcato

A BARAFUNDA


Em casa do meu tio Carreço havia uma dependência que apesar de ficar no 1ºandar, era para nós o sótão e tinha um nome: BARAFUNDA.
Ali se se guardava de um tudo . Móveis, caixas, arcas cheias de roupas antigas que nós mais tarde aproveitámos para nos mascararmos e um número interminável de objetos considerados sem préstimo ou à espera de melhores dias em que fossem chamados porque se lhe achara serventia. Havia uma cadeira de verga recostáveis onde eu gostava de me balouçar.
Aquele era o sítio de eleição para nos reunirmos, eu, a Adélia e as minhas primas Maria Inácia e Maria Odete.
Devia haver janela mas nunca a vi aberta e a luz da rua nunca ali entrava. A dependência permanecia numa penumbra que mais adensava o mistério daquele lugar.
Um dia, estávamos nós mais uma vez remexendo, abrindo e fechando arcas e malas, encontrámos um lindo colar vermelho de macias contas ovais não sei se de coral ou qualquer pedra semi preciosa. As contas iam crescendo das mais pequeninas até uma enorme ao meio. Agora à distância vejo que devia ser de grande valor e fora parar aqui por um descuido infeliz.
Virámos e revirámos o colar a imaginar o que poderíamos fazer com ele.
Às tantas uma de nós, parece-me que a Adélia, teve uma brilhante idéia:
-Comêmo-lo!
Bem dito melhor feito. Sentámos-nos em roda no chão e no meio o 'apetitoso' manjar. Partimos o fio e espalhámos as contas pela mesma ordem .
À vez lá fomos engolindo pedra a pedra em seco. Quando começáramos a crescer já era precisa alguma coragem para as mandar goela abaixo mas ninguém se ousou recusar... E ali estava a enorme pedra do meio. Quem se atrevia com ela? Todas sabíamos quem iria ser: seria a Adélia, guela de pato que tudo engolia desde caroços de azeitona a caroços de nêsperas.
Com um grande ritual lá assistimos ao grande e único momento do dia.
Sem mostrar esforço que se visse meteu a pedra na boca e num ápice COMEU-A !!!
Muitos anos depois, já eu adulta e com mais juízo falando com a Natália soube que o colar era da minha prima Flor, mãe da Mina.
MuItos anos ainda se passaram até ganhar coragem para contar à Flor o acontecido.
O meu tio era um grande viajante e de uma dessas viagens trouxera-lhe aquela prenda. Tinha tido um grande desgosto quando o perdera e levou o tempo com medo que ele se lembrasse de lhe perguntar por que não usava a prenda que lhe dera. Vivia naquele tempo lá em casa do tio como foi o caso de muitas outras sobrinhas entre elas a Natália, minha irmã mais velha.
Como era muito minha amiga, assim que lhe contei disse logo:
- já estou a ver! Foi obra da Maria Inácia! Vocês nunca se iriam lembrar duma coisa dessas!
Realmente esta minha prima tinha idéias que não lembravam ao diabo mas daquela vez a obra saíra de todas as nossas cabecinhas. Agradeci mentalmente a amizade da Flor e lá confirmei que realmente a idéia tinha partido da Maria Inácia. Ela que me perdoe...

O AUTOMÓVEL  NO SÓTÃO

Não resisto a contar a  estória dum outro sótão que até parece anedota.
Em casa dos meus pais não havia sótão mas o telhado por cima do primeiro andar estava a uma altura tal que dava à vontade para outro andar e ainda sobrava espaço.
A pessoa que nos comprou o prédio, sabendo disso, resolveu fazer lá mais uma dependência. Qual não foi o seu espanto quando ao abrir o teto se deparou com um automóvel !
Nem toda a gente se pode gabar de ter um automóvel no sótão...
Explicação para o fenómeno:
O meu pai tinha ao lado da casa uma oficina. Havia na família um carro grande que foi substituído por outro mais moderno. Como não o quiseram deitar fora resolveram içá-lo para o telhado da casa. A oficina foi vendida e o dono, na hora da venda, exigiu que fosse levantada uma parede até ao telhado. Quem fez a obra não tirou o automóvel que lá ficou para surpreender o novo dono da casa que não deve ter ganho para o susto!

 -Milena Falcato


Outubro 2013

A CAMINHO DA ESCOLA

Para chegar à escola tinha que atravessar quase toda a cidade mas sempre fui sozinha desde o primeiro dia. Não como hoje acontece com os pais ou familiares a acompanhar as crianças quatro vezes ao dia.
Eu nunca tinha apetite e muito menos ao pequeno almoço. A minha mãe fazia de tudo para que eu comesse e, quando já não havia nada a fazer, dava-me 5 tostões para comprar um brinhol na  Ti 'Dalina. Por vezes tinha direito a um ovo assado nas brasas da fornalha batido com cerveja preta e muito  açúcar que eu apreciava no primeiro dia mas que depressa enjoava.
Fosse a comer o pequeno almoço em casa, fosse a ir à barraca comprar o brinhol, sempre perdia tempo mais que suficiente para chegar atrasada. Claro que, à minha espera logo que pisava o portado da sala, tinha a D. Ludovina à minha espera de régua em riste e muitas vezes era este o único pequeno almoço do dia.
Mesmo sabendo o que me esperava arranjava sempre alguma entretenga para o caminho. Lembro-me particularmente de uma brincadeira  com que me divertia sempre que encontrava mais companheiras no caminho. Para chegar à escola, depois de sair do Largo de S. José onde morava, tinha que percorrer toda a rua de S. António para entrar no Rossio onde ia ao brinhol. Aí já se iam juntando algumas colegas mas a maior parte só surgiriam no largo onde é agora a praça de taxis e o Tribunal. No lugar deste era a Igreja de S. André e onde estão os táxis era a praça de hortaliças. Nesse largo começava então a brincadeira.
Dávamos todas as mãos e algumas de nós seguíamos de olhos fechados guiadas pelas outras. Todas queriam ser a tapar os olhos e havia sempre discussão. Um dia, sem darmos por isso, todas fechámos os olhos ao mesmo tempo e zás! dou com toda a força num candeeiro!!!
Dali ainda tínhamos de atravessar o Terreiro das Covas, a Rua das Freiras e só depois de passar a Fonte de Espírito Santo chegávamos à escola na Rua da Levada. Estão a ver o que tinha de andar para ir à escola? Não admira que chegasse todos os dias em último lugar...
Naquele dia para além do atraso levava metade da cara toda negra e não consegui convencer a professora que tinha caído da cama e não fora tabefe da minha mãe. Antes isso que descobrir o verdadeiro motivo daquele inchaço. Então é que eu ficava com um inchaço maior do outro lado...
Como todos os dias chegava atrasada lá estava ela sempre atrás da porta à minha espera:
-Outra vez a pisar ovos? E trás! Lá vinha a primeira dose do dia!
Uma vez, ao querer apanhar uma companheira, escapou-lhe a régua e bateu com tanta força na carteira que a partiu. Durante uns dias houve folga mas eu , esperando que ela me ficasse muito agradecida disse-lhe que lhe traria um régua nova. Pediria ao meu tio Júlio que era carpinteiro que a fizesse.
Mas o meu tio nunca arranjava vagar para aceder ao meu pedido e ela não me largava,  todos os dias a pedir- me a régua. Um dia em que já não sabia o que lhe dizer, levantei-me com o propósito de não sair de casa sem a dita.
Fui- me ter com o meu tio e tanto o chateei que ele me mandou esperar e logo ali se pôs a fazê-la. Esperei e esperei até que ele acabasse o trabalho. Era uma linda régua de azinho, única madeira com que o meu tio trabalhava, pesada e bem mais grossa que a primeira.
Desta vez em lugar de chegar atrasada chegaria atrasadíssima. Não importava!  Levava-lhe aquela prenda que tanta falta lhe fazia e até me iria agradecer.
Todo o caminho me fui tentando convencer que assim seria e quando cheguei toda ufana apresentei-lhe a régua novinha em folha.
-Outra vez atrasada! gritou. E agarrando na linda prenda que lhe levava deu-me com ela nas mãos enquanto gritava:
-Pois vais já estreá-la!!!
E,  nem nesse dia,  a megera me poupou...


Maria Helena Alves   Novembro 2013