Éramos
10 irmãos na nossa casa. A minha madrinha, que não podia ter filhos, pediu aos
meus pais que me deixassem ir morar com eles. Nunca soube ao certo que idade
teria mas devia ser ainda bebé.
Vivi
em casa dos meus padrinhos até aos seis anos e meio como filha única muito
mimada principalmente pelo meu padrinho. O pior mesmo era ser filha única e não
ter companhia para a brincadeira.
A
certa altura descobri, duas ou três portas abaixo na minha rua, a única criança
que ali morava além de mim. Carlinhos era o seu nome e ainda hoje o
recordo com imensa saudade e uma raiva enorme de o ter deixado morrer sem o
tentar rever.
O
Carlinhos, um ou dois anos mais velho, tinha o dom especial para inventar brincadeiras
que nos habilitavam a uns bons açoites.
História
número um :
O pai
era dentista e precisava de sossego, a mãe não nos queria a atrapalhar na
cozinha e, para nosso deleite, mandava-nos para o quarto de casal
que era a maior divisão da casa e onde podíamos brincar à vontade.
Assim
que entrava queria logo saber qual era a brincadeira do dia .
Nesse
dia, como sempre aliás, já a tinha estudada.
- Hoje
vamos brincar aos circos. Ora os circos têm um teto de pano e ele já tinha
estudado como o fazer. Tirou colcha da cama e tentou estendê-la nos
quatro ferros mas era pesada e caía. Tirámos as bolas de cobre que encimavam
cada um mas escorregava na mesma. Então, com muito esforço, tentámos furar os
ferros nos quatro cantos da colcha e acabámos " a obra " com o
auxílio duma tesoura...
O que
nós nos divertimos! Houve acrobatas, malabaristas, palhaços e muita muita
risota que acabou por chamar a atenção da mãe e calcula-se o que foi .
Cada
um para sua casa para lhe ser aplicado o respetivo castigo...
Para
nós era igual porque se repetia todos os dias...
História
número dois:
Eu
tinha umas lindas tranças que o meu padrinho adorava. A minha madrinha
era
grande admiradora da Shirley Temple e do seus caracóis. Não descansou
enquanto não me cortou as tranças e me encheu a cabeça de caracóis.!
Para
melhor os moldar, apartava-me grande parte dos cabelos no cimo da cabeça e, com
um gancho que se usava na altura, enrolava-o todo muito bem fechando
depois o gancho a prender todo o rolo.
E foi
neste preparo que cheguei a casa do Carlinhos. Logo ali teve a brilhante ideia
de irmos brincar aos cabeleireiros.
Foi à
cozinha tirar uma toalha que me atou ao pescoço e uma tesoura que
conseguira surripiar.
Com
uma mão agarrou no gancho e õcom a outra, ainda que com alguma dificuldade,
cortou rente todo aquele cabelo que estava preso no gancho. Calculo hoje o
susto e desgosto da minha madrinha quando me viu aparecer em casa com uma
careca que apanhava todo o cimo da cabeça...
Lá se
foi, e da pior maneira, o sonho de ter em casa uma Shirley Temple
História
número três:
Eu
tinha brinquedos caros e o meu padrinho já não sabia o que me dar.
Naquele
dia fora a Lisboa e trouxera-me uma boneca de cartão muito grosso.
Teria
uns 40 cm de altura e um pedestal em Madeira que a mantinha de pé. Os
olhos muito grandes mexiam e apertando a barriga chorava. Tinha depois
vestidos, sapatos, chapéus, roupa interior, enfim toda a espécie de acessórios
que se possa imaginar.
Mal
tive tempo de desembrulhar o presente corri a casa do meu amigo pois naquele
dia teríamos um brinquedo que nos manteria activos por muito tempo porque havia
muito que vestir e despir à Bonecao
Depressa
se cansou e surgiu-lhe uma idéia melhor:
- Hoje
vamos brincar aos jantarinhos!
Foi
buscar uma panela, umas tesouras, umas facas, umas toalhas a fazer de aventais
e estavam os chefes cozinheiros prontos a começar o dia...
Começou
pelo fato que, como era de cartolina ainda que forte, conseguíamos cortar com a
tesoura. Com muito trabalho lá conseguimos enfiar tudo em bocadinhos dentro da
panela.
Até
aqui tudo bem (mal) ! Mas hei-nos chegados à boneca propriamente dita que era
muito grossa para a tesoura. Teve que ir buscar uma faca de serrilha e, mesmo
assim, foi com um enorme esforço que juntámos uns três bocados à sopa que
já estava na panela. Não sei se chegámos a comer a sopa mas "outra sopa
" me esperava em casa e com muita razão...
Ainda
me recorda o desgosto de não ter sequer chegado a brincar com a minha linda
boneca...
Contando
que já se passaram uns 75anos dada a qualidade do brinquedo, não deve ter
sido nada barato.
-Milena Falcato (Novembro 2013)