OS NOSSOS ESCRITOS

TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
POESIA, CONTOS E OUTROS TEXTOS TRABALHADOS NA AULA

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Alguém se lembra quando, a seguir a 1974, nos reuníamos à porta da Câmara Municipal todos dias 24 de Abril à meia noite para cantarmos a Grândola ?

Alguém se lembra quando, a seguir a 1974, nos reuníamos à porta da Câmara Municipal todos dias 24 de Abril à meia noite para cantarmos a Grândola ?
A multidão que ali se juntava !
Que saudades tenho desses tempos...
Era o tempo em que esta canção era cantada sem medo de "ser mal interpretada"...
Lembro-me particularmente dum ano em houve um baile até altas horas nos claustros da Camara . Era abrilhantado por uma orquestra fora do comum com uns elementos algo estranhos. Penso que um deles era de Estremoz . Um havia que toda a noite nos intrigou a todos porque ninguém conseguiu acertar se seria homem ou mulher. Anos mais tarde vim a conhecê-la bem. Fui sua amiga, era minha colega e assumia-se como rapaz.
Um ano já não sei a data, meteu-se-me em cabeça fazer reviver aquelas noites mágicas em que me sentia tão feliz. Fiz um apelo à família e alguns amigos e lá estávamos nós à meia noite em ponto, um grupinho pequenino mas animado, a relembrar anos passados em que as pessoas não tinha medo de dizer que estavam com os ideais de Abril e onde a canção era um símbolo desse ideal.
Ainda hoje lá estaria se tivesse pelo menos meia dúzia para companhia.
Não calculam com que prazer cantámos nós e repetimos vezes sem conta a Grândola no 24 de abril do ano passado à porta da Biblioteca !


-Milena Falcato

CIGANOS



Ouvi há poucos dias a crónica "o amor é..." de Júlio Machado Vaz sobre a maneira como os ciganos foram e são tratados na Suécia. Foram esterilizados, impedidos de entrar no país, as suas crianças foram-lhes retiradas. Fiquei estupefacta pois, embora saiba da perseguição que esta etnia tem sofrido longo da história, nunca pensei que isto se pudesse passar na Suécia país que eu pensava ser um modelo de democracia.
Uma cigana que tinha sido convidada para a cerimónia em que o governo iria pedir desculpas públicas pela maneira como a etnia tinha sido tratada, foi impedida de entrar no hotel onde a cerimónia decorria. Pasme-se!!!
Como Júlio Machado Vaz falou da sua boa relação com ciganos também eu quero aqui dar testemunho do meu bom convívio com esta raça.
Tempos houve em que as crianças eram ameaçadas com o homem do saco ou "o cigano" sempre que se recusava a comer a sopa. Qualquer briga, qualquer roubo tem como primeiros suspeitos os ciganos. No entanto a grande maioria dos crimes, rixas, desrespeito da lei nada têm com eles.
A minha convivência com os ciganos vem da minha infância. O meu pai teve durante muitos anos uma estalagem onde muitos deles tinham residência fixa.
Como tínhamos acesso pela horta era lá que, tanto eu como as minhas irmãs e primas, passávamos grande parte do nosso tempo e das nossas brincadeiras.
Sempre foram muito carinhosos connosco e algumas vezes fugi para ir comer com eles. Ainda hoje faço uma sopa a que chamo "grãos à cigana" que lá comia e de que gosto muito.
 Lembro-me que um dia, no meio duma briga, um deles abriu, em cima da mesa de pedra, uma navalha de ponta e mola. Eu estava presente e, na minha inocência, quis pegar a navalha para que não se ferissem. Fechou-se na minha mão apanhando-me um dedo de raspão. Ao verem o sangue logo ali a briga se acabou e era ver a aflição dos dois a quererem tratar-me da ferida e o medo de que o meu pai soubesse do sucedido.
Quando nasceu lá uma menina convidaram o meu irmão Aníbal e a minha prima Maria Inácia para padrinhos. Foi-lhe posto o nome de Donalda.
Depois deste são convívio nunca tive ideias pré concebidas como a maioria das pessoas têm sobre os ciganos. Há bons e maus como em todas as raças.
Como professora muitos foram os que passaram pela minha escola e não raro era chamada a resolver conflitos. Ainda hoje sou muito amiga de algumas dessas minhas alunas.
Tive uma acção de formação nobre minorias na escola. estivemos um mês na Cúria com muito bons
Durante muitos anos dei alfabetizaçãon a adultos e houve anos em que a sala se enchia apenas com pessoas dessa etnia. Alguns pertenciam a famílias que se odiavam mas todos acataram as minhas recomendações de que tudo isso ficava para lá da porta da sala de aula e nunca houve entre eles o mais leve atrito.
Alguns eram bastante inteligentes e aprenderam a ler com uma enorme facilidade. Um me lembro que vinha sempre irrepreensívelmente vestido, depois de ter passado nos balneários públicos para tomar banho. O mesmo não se poderia dizer da maioria que traziam na pele e nas vestes a marca das péssimas condições em que viviam. Tinha havido mortes nas duas famílias e o luto era guardado, para além do preto com que se vestiam, com o cabelo e barba que nunca mais cortavam e um chapéu que nunca tiravam da cabeça.
No mercado ainda hoje  encontro alguns desse alunos ou seus familiares que me vêm cumprimentar com muita simpatia.


-Milena Falcato

O OLEIRO

Eu ficava hipnotizada , horas a olhar aquele trabalho e com um enorme desejo de "meter as mãos na massa".
Assim foi que,  quando fui dar educação visual na Escola Secundária, ao descobrir na sala uma roda de oleiro, logo ali resolvi dar uma aula em que todos a experimentássemos.
Pois se era tão simples! Era só pôr o barro e depois de bem sentados pôr a roda em movimento com o pé.
Santa ingenuidade... Sem qualquer preparação, sem pedir conselho, comprei o barro e pu-los à vez a fazer a experiência guardando-me para último.
A roda estava arrumada a um canto ao pé do quadro e, a cada tentativa, a grande bola de barro ia parar à parede! O que eles se divertiram!
Quando finalmente chegou a minha vez tomei o meu lugar plenamente convencida de que agora é que a lição começaria a sério. Puz o material na roda, calquei-o um pouco como tinha visto fazer vezes sem conta e, com uma autoridade saloia, fiz girar a roda.
Foi uma briga e tanto com o barro que escorregava por entre os dedos que nem enguias. Como algumas vezes acontece com motoristas  inexperientes que, ao primeiro sinal de perigo, carregam no acelerador em vez do travão, assim fiz eu. Quanto mais atrapalhada me via mais  dava ao pedal. E assim acabei a obra de arte que eles tinham iniciado e toda a parede à volta recebeu o nosso contributo.
Não me lembro da desculpa que dei para toda aquela sujidade. Mas uma coisa aprendi que me serviu de lema para todo o meu percurso como professora. Ir para a  aula muito bem preparada, com sólidos conhecimentos do assunto fosse  qual fosse a matéria a transmitir .
Muitos anos mais tarde inscrevi-me num workshop de olaria. Aí, com muito treino, muito barro estragado  (sempre recuperado depois), e uma roda elétrica bem mais difícil de controlar, fiz algumas "obras de arte" de que ainda guardo um exemplar.


-Milena Falcato

COISAS PERDIDAS I



Os meus filhos, os meus padrinhos, os meus brinquedos, os meus livros, o Carlinhos, a casa onde nasci, o meu sonho de prosseguir os estudos, a lista é interminável


Choro inúmeras perdas que fui sofrendo ao longo dos meus oitenta anos mas vou recordar aqui uma que ainda perdura na minha memória.
O meu padrinho beijava o chão que eu pisava, como se costuma dizer. Já a minha madrinha era mais austera e não me dava muito mimo. Devia ser para ela uma boneca que queria trazer muito bem vestida com a cabeça cheia de caracóis para mostrar às amigas. Embora apenas me lembre de alguns castigos diziam-me as pessoas que com ela conviviam que era muito má para mim. Ainda há dias numa visita que fiz a uma prima que vai agora fazer 103 anos e é a única sobrevivente daquela época, ela me recordou isso mesmo.
Custa-me acreditar  mas são muitas pessoas a dizer o mesmo.
Na altura de irem para Angola e me deixarem em casa dos meus pais deu-se um  episódio difícil de acreditar e que de certa maneira prova que as pessoas estavam certas. Queriam levar-com eles mas os meus pais não deixaram.
O meu padrinho sempre me encheu de brinquedos caros e tinha entre muitos outros uma linda boneca que chorava e abria e fechava os olhos e um carrinho de verga com uma capota que se levantava onde eu a levava a passear. Mais uns dois ou três também assim grandes mas que já não me recordo quais seriam faziam as minhas delícias e entravam todos os dias nas minhas brincadeiras solitárias.
Pois o que havia a minha madrinha de se lembrar? Assim que chegou a Luanda,  escreveu-me uma carta, a única em sessenta e tal anos que lá esteve, e dentro vinha uma fotografia: numa espaçosa varanda de madeira na frente da vivenda , lá estava ela sentada numa numa cadeira de baloiço.
À sua frente, estava o carrinho com a minha bela boneca e mais  alguns brinquedos espalhados a seus pés.
Ora quem faz isto a uma criança de seis anos que ainda se debatia com ausência daqueles que eram para todos os efeitos os meus pais, não pode realmente ser pessoa bem formada.
Quando cheguei a casa dos meus pais trouxe, mesmo assim, uma grande quantidade de brinquedos (uma arca de madeira cheia) que fizeram as delícias das minhas irmãs que nunca tinham tido nada daquilo.


-Milena Falcato

O PRIMEIRO AMIGO

CARLINHOS

Éramos 10 irmãos na nossa casa. A minha madrinha, que não podia ter filhos, pediu aos meus pais que me deixassem ir morar com eles. Nunca soube ao certo que idade teria mas devia ser ainda bebé.
Vivi em casa dos meus padrinhos até aos seis anos e meio como filha única muito mimada principalmente pelo meu padrinho. O pior mesmo era ser filha única e não ter companhia para a brincadeira.
A certa altura descobri, duas ou três portas abaixo na minha rua, a única criança que ali morava além de mim. Carlinhos era o seu nome  e ainda hoje o recordo com imensa saudade e uma raiva enorme de o ter deixado morrer sem o tentar rever.
O Carlinhos, um ou dois anos mais velho, tinha um dom especial para inventar brincadeiras que nos habilitavam a uns bons açoites.

História número um :
O pai dele era dentista e precisava de sossego, a mãe não nos queria a atrapalhar na cozinha e,  para nosso deleite,  mandava-nos para o quarto de casal que era a maior divisão da casa e onde podíamos brincar à vontade.
Assim que entrava eu queria logo saber qual era a brincadeira do dia .
Nesse dia, como sempre aliás, já a tinha estudada.
- Hoje vamos brincar aos circos. Ora os circos têm um teto de pano e ele já tinha estudado como o fazer. Tirou a colcha da cama e tentou estendê-la nos quatro ferros mas era pesada e caía. Tirámos as bolas de cobre que encimavam cada um mas escorregava na mesma. Então, com muito esforço, tentámos furar os ferros nos quatro cantos da colcha e acabámos " a obra " com o auxílio duma tesoura...
O que nós nos divertimos! Houve acrobatas, malabaristas, palhaços e muita muita risota que acabou por chamar a atenção da mãe e... calcula-se o que foi !
Cada um para sua casa para lhe ser aplicado o respetivo castigo...
Para nós era igual, porque se repetia todos os dias...

História número dois:
Eu tinha umas lindas tranças que o meu padrinho adorava. A minha madrinha
era grande admiradora da Shirley Temple e do seus  caracóis. Não descansou enquanto não me cortou as tranças e me encheu  a cabeça de caracóis.!
Para melhor os moldar, apartava-me grande parte dos cabelos no cimo da cabeça e, com um gancho que se usava na altura,  enrolava-o todo muito bem fechando depois o gancho a prender todo o rolo.
E foi neste preparo que cheguei a casa do Carlinhos. Logo ali teve a brilhante ideia de irmos brincar aos cabeleireiros.
Foi à cozinha tirar uma toalha que me atou ao pescoço  e uma tesoura que conseguira surripiar.
Com uma mão agarrou no gancho e, com a outra, ainda que com alguma dificuldade, cortou rente todo aquele cabelo que estava preso no gancho. Calculo hoje o susto e desgosto da minha madrinha quando me viu aparecer em casa com uma careca que apanhava todo o cimo da cabeça !
Lá se foi, e da pior maneira, o sonho de ter em casa uma Shirley Temple...

História número três:
Eu tinha brinquedos caros e o meu padrinho já não sabia o que me dar.
Naquele dia fora a Lisboa e trouxera-me uma boneca de cartão muito grosso.
Teria uns 40 cm de altura e  um pedestal em madeira que a mantinha de pé. Os olhos muito grandes mexiam e,  apertando-lhe a barriga, chorava. Tinha depois vestidos, sapatos, chapéus, roupa interior, enfim toda a espécie de acessórios que se possa imaginar.
Mal tive tempo de desembrulhar o presente corri a casa do meu amigo pois naquele dia teríamos um brinquedo que nos manteria activos por muito tempo. Havia muito que vestir e despir à boneca.
Depressa se cansou e surgiu-lhe uma idéia melhor:
- Hoje vamos brincar aos jantarinhos!
Foi buscar uma panela, umas tesouras, umas facas, umas toalhas a fazer de aventais e ali estavam os chefes cozinheiros prontos a começar o dia...
Começou pelo fato que, como era de cartolina ainda que forte, conseguíamos cortar com a tesoura. Com muito trabalho lá conseguimos enfiar tudo em bocadinhos dentro da panela.
Até aqui tudo bem (mal) ! Mas hei-nos chegados à boneca propriamente dita que era muito grossa para a tesoura. Teve que ir buscar uma faca de serrilha e, mesmo assim, foi com um enorme  esforço que juntámos uns três bocados à sopa que já estava na panela. Não sei se chegámos a comer a sopa mas "outra sopa " me esperava em casa e com muita razão...
Ainda me recorda o desgosto de não ter sequer chegado a brincar com a minha linda boneca...
Contando que já se passaram uns 75anos e dada a qualidade do brinquedo, não  deve ter sido nada barato.

-Milena Falcato

A PRIMEIRA VEZ QUE ME PERDI


Em criança não me lembro de alguma vez me ter perdido. Antes de ir para a escola primária só saía de casa acompanhada pelos meus padrinhos esceção apenas para as fugidas a casa do meu amigo Carlinhos que morava a poucos passos da minha casa.
Quando comecei a frequentar a escola, já em casa dos meus pais, ia sempre sozinha embora quase tivesse que atravessar Estremoz. Bem diferente do que acontece agora com as crianças a serem acompanhadas quatro vezes por dia e, maior parte deles, de popó.
Conhecia bem toda a cidade e não havia hipótese de me perder.

Já adulta fui estudar para Évora e, aí sim, inúmeras vezes me perdi. Sempre que me afastava do trajeto habitual, desorientava-me e passava a chatear de minuto a minuto quem por mim passava. Muitas vezes fui parar ao outro extremo da cidade. Ainda hoje, não obstante lá ter passado dois anos,  muitas das vezes que vou a Évora, lá estou eu a perguntar às pessoas como chegar ao local onde quero ir...
Uma vez fui com a Ana Maria Albardeiro a uma ação de formação na Escola do Magistério Primário. Durou mais tempo que o previsto e, quando saímos, já era tarde da noite. Dirigimos-nos para o carro mas, onde estava ele? Nenhuma de nós fazia a menor ideia e ali nos pusémos a andar à toa na esperança de o avistar ou que ele viesse ter com a gente...
Começámos a perguntar a quem passava numa Évora quase deserta àquela hora.
A Ana só dava uma pista: tinha avistado uma palmeira quando estava a estacionar o carro. Lembro-me de termos encontrado um grupo de raparigas que nos indicou um caminho. Fartámo-nos de andar e chegámos por fim à rua indicada e lá se perfilava uma enorme palmeira, mas não era a nossa palmeira!

Em criança não me lembro de alguma vez me ter perdido. Antes de ir para a escola primária só saía de casa acompanhada pelos meus padrinhos esceção apenas para as fugidas a casa do meu amigo Carlinhos que morava a poucos passos da minha casa.
Quando comecei a frequentar a escola, já em casa dos meus pais, ia sempre sozinha embora quase tivesse que atravessar Estremoz. Bem diferente do que acontece agora com as crianças a serem acompanhadas quatro vezes por dia e, maior parte deles, de popó.
Conhecia bem toda a cidade e não havia hipótese de me perder.

Já adulta fui estudar para Évora e, aí sim, inúmeras vezes me perdi. Sempre que me afastava do trajeto habitual, desorientava-me e passava a chatear de minuto a minuto quem por mim passava. Muitas vezes fui parar ao outro extremo da cidade. Ainda hoje, não obstante lá ter passado dois anos,  muitas das vezes que vou a Évora, lá estou eu a perguntar às pessoas como chegar ao local onde quero ir...
Uma vez fui com a Ana Maria Albardeiro a uma ação de formação na Escola do Magistério Primário. Durou mais tempo que o previsto e quando saímos já era tarde da noite. Dirigimos-nos para o carro mas, onde estava ele? Nenhuma de nós fazia a menor ideia e ali nos pusémos a andar à toa na esperança de o avistar ou que ele viesse ter com a gente...
Começámos a perguntar a quem passava numa Évora quase deserta aquela hora.
A Ana só dava uma pista: tinha avistado uma palmeira quando estava a estacionar o carro. Lembro-me de termos encontrado um grupo de raparigas que nos indicou um caminho. Fartámo-nos de andar e chegámos por fim à rua indicada e lá se perfilava uma enorme  palmeira mas,  não era a  nossa  palmeira ...
Cansadas,  já desesperadas, ali ficámos sem saber o que fazer quando por nós passou um carro que,  depois de abrandar,  começou a entrar num portão no fim da rua. Era a nossa última esperança pois já não se via vivalma. Corremos rua fora e chegámos mesmo no momento em que o portão ir ser fechado. Voltamos a dar a nossa única referência mas o senhor, muito amável,  disse-nos que precisava de mais alguma pista. Aí a Ana, espremendo ao máximo os seus neurónios, lembrou que tinha visto no chão umas riscas, talvez nas próprias pedras da calçada. O homem, decerto grande conhecedor da cidade, reconheceu logo o sítio de que falávamos.
Era no outro extremo da cidade e tinha sido noutros tempos a praça. Os riscos no chão seriam as marcações para os tabuleiros. Meteu-nos no carro e ele mesmo nos levou até lá.
Fartámo-nos de agradecer mas, quando a Ana estava ainda estava tentando ligar o motor, avistámos uns faróis que vinham na nossa direção. Era o nosso'amigo' que nos disse ter ficado  muito apoquentado por ter deixado duas meninas sozinhas àquela hora da noite.
Vinha então com uma proposta: tinha uma casa onde recebia raparigas e nós podíamos lá ir dormir e partir depois de manhã. No primeiro instante ainda pensámos que a oferta poderia não ser muito honesta mas, mesmo assim, agradecemos mais uma vez a sua amabilidade.
Pelo caminho, já mais descansadas, reconhecemos a simpatia  e extrema amabilidade deste homem que por duas vezes atravessou a cidade adiando a sua hora de descanso para socorrer duas desconhecidas.
São estas e muitas outras que já me aconteceram  que me fazem ter confiança no ser humano e esperança que o mundo, no futuro, possa ser melhor.


-Milena Falcato

NATAL

24 de Dezembro

Véspera de Natal. Mal posso esperar.
Não sei porque gosto tanto do Natal. Talvez pela ceia, os doces, as prendas.
Cá em casa somos 10 irmãos . Só há prendas muito pequeninas e são só para as meninas.  Este ano somos só 3 que a Natália está em casa do tio Carreço.
Antes de virmos dormir lá alinhámos os sapatos na chaminé.
Avistámos no escritório uma grande caixa de cartão muito bem fechada mas tivemos medo de a abrir.
Subi de má vontade para o quarto com as minhas irmãs e preparo-me para uma noite sem sono.

25 de Dezembro

Nunca me vou esquecer deste Natal.
Depois de uma longa espera, alguma claridade assoma pela janela e diz-me que está a nascer o dia 25. Só aí temos ordem de descer até à cozinha. Acordo as minhas irmãs e precipitamo-nos escada abaixo, atravessamos o quintal (está um frio de rachar e nós em camisa de dormir...) e ali estão estão, alinhados na chaminé, 8 ou 9 sapatos todos com alguma coisa dentro:
Nos sapatos enormes dos meus irmãos há apenas umas cascas de laranja muito enroladinhas ou uns carvões roubados aos tições da lareira.
E nos nossos? Umas miniaturas de tabletes de chocolate num atado apertado por uma fitinha de seda colorida e uns brinquedos que nos enchem os olhos. Estava ali a explicação da caixa mistério. Brinquedos e jogos a que faltavam peças e que vêm da loja do meu tio Chico porque já não têm venda. Mas no meu sapatinho está mais qualquer coisa do que nas minhas irmãs.
O dono da farmácia Costa, que gosta muito de mim, deixou-me uma prenda de Natal.
Perante a inveja das minhas irmãs desembrulhei o pacote e de lá saíu a mais linda boneca que eu já vi.
Não cabia em mim de contente e durante todo o dia não mais a larguei.
Depois do jantar reunimos-nos todos à chaminé à volta do lume de chão. E lá estou eu com a minha prenda de Natal preferida. O quentinho da lareira sabe- me bem, aquece-me as faces. Embora proibida de o fazer, agarro a tenaz para mexer as brasas. Gosto de ver as fagulhas que se levantam logo que lhes chego. A minha mãe ralha, largo a tenaz e levanto-me. Um clarão enorme, chamas azul esverdeadas levantam-se e só após alguns minutos percebo que já não tenho boneca... Era de celulóide e bastaram uns segundos para ser consumida pelas chamas. Choro desesperada . Sei que por muitos anos que ainda viva, nunca mais terei desgosto comparado com este que estou sentindo agora.



-Milena Falcato

A ESCADA

Era bastante perigosa a escada que nos levava à rua. Tinha uns degraus muito altos e uma inclinação que a tornava difícil para minha idade e tamanho. Sempre que a descia ou era acompanhada ou ouvia uma série de recomendações que eu fazia por não ouvir pois já me achava muito crescida para ouvir conselhos.
Por ela descia todos os dias em que me conseguia escapulir para ir brincar com o Carlinhos, meu único amigo, que morava uns metros abaixo da minha casa. Era com grande alegria que galgava os degraus deixando para trás os gritos da madrinha que fosse devagar, que ia cair...
Pior era quando os subia de regresso pois quase sempre me esperavam uns açoites, bem merecidos por sinal porque, muitas vezes a mãe dele já se tinha   adiantado a vir contar à minha madrinha as asneiradas em que tinham terminado as nossas brincadeiras. Muito nos divertíamos nós e que saudades eu guardo do meu amigo Carlinhos...
Eu era sonâmbula e uma noite ouvi como se verdade fosse, a minha madrinha chamar-me e dizendo para me apressar para irmos sair.
Muito obediente desta vez, saí da cama, bem enrolada nos cobertores e dirigi-me para a escada. Ali chegada não existiram degraus e só me lembro de me --encontrar no patinho cá em baixo ainda com os cobertores atrás e os meus padrinhos de roda de mim muito assustados sem saberem como tinha eu ali ido parar. Valeram-me os cobertores que me fizeram escapar a resultados muito sérios ou até à morte. Um galarô que toda a noite cantou e por aqui se ficou a aventura sonambulesca...


-Milena Falcato

O MEU QUARTO

Não seria muito grande e, talvez por isso, sentia-me lá muito aconchegada.
O meu padrinho encomendou a um bom artista de Estremoz a decoração do quarto. Foi assim que eu fiquei com um quarto de sonho muito lindo .
Todas as  paredes ficaram repletas de figuras do Walt Disney em ponto grande. Miquey,  Donaldo e sobrinhos, Pateta, Popey e Margarida e mais alguns que não me lembra passaram a fazer parte das minhas noites.Foram todos os que lá couberam.
Ninguém tinha um quarto tão lindo como o meu!
Mesmo assim havia ocasiões em que eu detestava ficar no quarto. Era na hora da sesta que a minha madrinha me obrigava a dormir. Metia-me na cama e fechava a porta para eu não me escapulir.
Mas a necessidade é mestra de engenho! Depois de alguns minutos de silêncio e quando ela já me julgava ferradinha, abria as portadas da sacada, levava para lá alguns brinquedos e uma vez fora do quarto tornava a fechar as portadas e aí tinha pela frente uma bela tardada de brincadeira. Para melhor os meus vizinhos da frente que já sabiam que àquela hora eu estava em transgressão, metiam-se comigo e ajudavam-me também a passar melhor o tempo. Eu tinha que falar baixo não fosse a minha madrinha ouvir e descobrir a marosca.
   E ali ficava até que chegasse a hora de acordar e tudo era reposto pela ordem de partida:  brinquedos recolhidos, janela fechada e tornava a meter-me na cama até a minha madrinha chegar para me "acordar"...


-Milena Falcato

A CASA DE JANTAR

O coração da casa
Antes da construção do primeiro andar a casa de jantar era na divisão que fica agora debaixo da escada.Tinha três portas. Uma delas, grande e pesada, dava para o quintal e nem sempre estaria fechada pois tinha que dar serventia à cozinha. Vindo da rua, entrava-se primeiro numa pequena casa de entrada que dava diretamente  para a casa de jantar assim como o corredor e tudo isso junto tornava aquela divisão desagasalhada. Não consigo visualizar o teto antes da escada ser feita. Não admira pois pouco tempo lá vivi dado que, nessa altura, estava em casa dos meus padrinhos.
No entanto há uma recordação recorrente quanto a essa 'casa de jantar'.
Como já disse antes, vivi com os meus padrinhos até aos seis anos e meio, altura em que foram para Angola.
Todos os domingos o meu primo Constantino vinha levar-me de visita a casa dos meus pais. Na minha lembrança calhava sempre na hora de almoço. A mesa era enorme para dar assento a uma família numerosa como a nossa. Para além dos meus pais e nove irmãos havia sempre tios ou primos de Casa Branca ou amigos da casa.
Eu entrava e encostava-me timidamente à parede em frente da mesa , agarrava com muita força a mão do meu primo e dali não arredava um passo. É natural que tivesse que ir falar aos presentes mas, na minha imaginação, só me vejo como espetadora duma qualquer mesa de restaurante cheia de pessoas que não me diziam respeito e com as quais eu não tinha nada a ver. Como se ali não conhecesse ninguém. O que eu queria era libertar-me rapidamente daquela situação. Tornava e tornava a apertar a mão do Constantino e a puxá-lo até que atendendo à minha insistência lá começávamos as despedidas e mais uns instantes e estávamos fora e com tempo para ainda dar um passeiozinho antes de me entregar em casa.
Lembro- me que mais tarde tive alguma dificuldade em habituar- me a comer  naquela mesa cheia de gente e até a estar em família. Aquela não era a minha casa e as saudades do meu padrinho doíam ainda. Era uma filha única que de um dia para o outro tinha que aceitar 9 irmãos. Mas as crianças têm um grande poder de adaptação e depressa me senti integrada.
Lembro-me dos almoços de sábado em que as coisa se complicavam. Havia sempre família da Casa Branca: tia  Alice e marido (tinham lá o filho o meu amigo Constantino) , tia Bárbara, primo Perninhas, prima Florência             Marnoto que trazia um problema qualquer a resolver com um advogado e entre mais uns tantos a Maria  Amélia mãe da Zuzu. Era muito divertida mas ficava um pouco intimidada no meio de tanta gente. O Aníbal para a arreliar gritava-lhe lá do seu lugar: ri-te Amélia!!! E logo ela se escangalhava a rir e com ela toda a mesa.
Claro que nem todas as semanas se reunia tanto pessoal mas as refeições sempre foram uma festa. Sempre tivemos liberdade para rir e falar à mesa..
Uma vez que o primeiro andar foi construído, a casa de jantar passou para o quarto dos meus pais que era uma dependência maior. Aí já estava também o meu tio Chico que impunha ou queria impor algum respeito à mesa. Mais dois empregados da oficina que também lá comiam, a costureira, e os genros e noras e filhos que foram sugindo era sempre um banquete. Diz-se que onde comem dois comem três mas muito mais fácil é quando há quinze comerem vinte... Havia sempre comida que chegasse para mais quatro ou cinco.
O meu irmão mais velho andava a estudar em Lisboa e quando vinha gostava de pôr a escrita em dia como se diz e queria silêncio para se fazer ouvir.
  Um dia compraram para a oficina um engenho de furar. A Adélia deu-lhe no goto o nome do objeto e cada vez que eu lho dizia baixinho ou o Armando o mencionava desatava a rir. Tanto riu que ele sai furioso da mesa, agarra-lhe num braço e foi pô-la lá fora no quintal talbez com algum açoite à mistura...
Indiferente ao choro e gritos dela a bater com toda a força na janela, lá continuou tranquilamente a a perorar sobre o 'engenho de furar'...
Este é um episódio entre muitos, muitos outros passados aqui nesta casa de jantar.
Pôr aquela mesa era uma tarefa que levava algum tempo. Trabalhou lá em casa uma rapariga do campo que estava a servir  pela primeira vez. No dia da entrada ao serviço mandou-a a minha mãe pôr a mesa. Quase na hora de almoço a minha mãe vendo que ela nunca mais aparecia, gritou-lhe da cozinha:
-Floripes, já puseste a mesa? Ao que responde de lá:
-Aí senhora nã me entendi com isto. Olhe, eu pus tudo em riba e quem quiser que puxe!
E lá estava em cima da toalha, única tarefa que conseguira finalizar, três ou quatro rimas de pratos, uma grande porção de copos e um enorme monte de talheres à espera de quem os puxasse...
Ali casei eu, a Adélia, a Olga, a Natália, o Quím, o Dâmaso, o Jaime e a minha filha Guida. Nessas alturas a casa de jantar mostrava-se insuficiente e era preciso pôr algumas mesas noutras divisões para acomodar tanta família e convidados.
Que saudades das ceias de Natal e Consoada ali passadas!
Também recordo aquela mesa sempre posta todos os três dias de  Carnaval onde abancavam grupos de mascarados e não só, trazidos pelo Aníbal ou pelo Jaime.
Enfim, esta é realmente a divisão da casa que mais e melhores recordações me traz à memória.


-Milena Falcato