O corredor era
comprido, muito comprido mesmo, proporcional ao meu medo do escuro. Saía-se da
porta da cozinha e entrava-se no corredor. Tínhamos que ir para a esquerda
quando íamos para os quartos, pois à direita ficava a porta do quintal. Eu ia dormir com a minha avó Bárbara, quando
a afilhada, que ia lá dormir com ela, não podia. Não era muitas vezes, mas
foram as vezes suficientes para eu ir e achar aquela casa grande e escura,
cheia de mistérios, ruídos e sombras; ali,
a noite era passada com sobressaltos, ao contrário da noite tranquila
que eu teria se dormisse em casa de meus pais.
Depois do serão muito
animado, com muita gente sentada à volta da lareira de casa de meus pais, eu e
a minha avó lá íamos muito agarradinhas uma à outra a caminho de sua casa. A
minha mãe ficava à porta com o cadeeiro a petróleo na mão, a tentar iluminar
alguma parte do caminho. A porta da casa da minha avó via-se da porta da minha
casa. A minha mãe esperava que nós entrássemos e metia-se para dentro. Quando
chegávamos junto da porta, a minha avó
começava a procurar a chave, uma chave grande, que facilmente se deveria
encontrar, mas que nunca estava no bolso onde a minha avó procurava, então
corria os bolsos todos e depois dizia: “Ai filha!!! Temos que voltar para trás,
temos que ir à casa da tua mãe, pois deixei lá a chave!!!”
Então, eu já cheia de
medo e aborrecida com aquela cena que se repetia todos os dias, dizia-lhe: - “
Oh avó, veja lá bem!!! A chave deve estar aí nalgum bolso!!” . A minha avó
voltava a procurar e lá estava a chave!! A chave que nos abriria a porta que
dava para a loja há muito, muito tempo sem actividade. Nada tinha vida
ali, as prateleiras vazias, as gavetas
fechadas e vazias, o balcão sem mais nada em cima, senão o candeeiro a
petróleo, com a luz muito muito baixinha, que nos esperava.
Entrávamos e a minha
avó subia a luz do candeeiro, pegava-lhe e levantava o braço para dar mais luz,
uma luz soturna que projectava sombras fantasmagóricas pelas paredes. Eu ia
atrás dela, não muito confiante... e entrávamos no corredor comprido, com
portas muito altas e estreitas, pintadas de cinzento escuro. Ao fundo, era a
cozinha para onde nos dirigíamos. Atravessar o corredor era uma eternidade.
Quando entrávamos na
cozinha, a minha avó pousava o candeeiro na mesa e começava logo a mexer de um
lado para o outro. Ia ao fogão aquecer o caldo de farinha de trigo que tinha
feito pela manhã, ia à despensa buscar o saco imaculado do pão guardado no
armário da despensa, ia à gaveta dos talheres na mesa da cozinha buscar a faca
muito areada, que parecia de prata e cortava duas fatias finissimas a todo o
comprimento do pão, ia à casa de jantar, ao aparador de pedra mármore buscar a
tigela da marmelada, que tinha sido feita no tempo dos marmelos. Eu ia buscar
as tigelas ao armário de parede, onde estavam os cântaros e tirava as colheres
da gaveta dos talheres. Era um ritual. Tudo feito com muita calma, muita
tranquilidade, um silêncio quebrado apenas pelas poucas palavras trocadas entre
nós. A minha avó punha o caldo de farinha crua nas tigelas e sentadas
tranquilamente, comíamos e bebíamos aquele manjar dos deuses. Depois de
comermos, a minha avó pegava no candeeiro e íamos corredor fora, até à última
porta, a porta do quarto da minha avó. Havia duas camas, a cama de casal de
madeira onde dormia a minha avó e uma caminha pequena em ferro, onde dormia a
pessoa que lhe ia fazer companhia durante a noite. A minha avó colocava o
candeeiro em cima da cómoda alta, de grande gavetões. Começavamo-nos a despir e
as nossas sombras projectavam-se pelas paredes caiadas de branco do quarto,
criando um ambiente taciturno. As sombras dançavam na parede branca. Eu vestia
a camisa de dormir o mais rápido que podia, para me meter na cama, pois o
ambiente não me era muito agradável. A minha avó despia-se calmamente, vestia a
camisa de dormir de flanela às florinhas e depois preparava-se para se deitar.
Antes, levava o candeeiro, com a chama muito baixinha, para o corredor, onde
ficava aceso durante toda a noite, e que dava ao quarto uma luz muito difusa de
presença. Sentada na cama, já pronta para se deitar, enrolava um xaile preto,
já velho, nos joelhos e com muito cuidado para não o desenrolar, metia-se entre
os lençóis e cobertores. Por vezes, ainda punha outro xaile velho nos ombros e
depois então, com muito cuidado é que se deitava. Eu admirava da minha cama,
aquele ritual diário do deitar, pois em minha casa ninguém tinha problemas de
dores nos joelhos nem frio nos ombros, e por isso, todos nos deitávamos sem
grandes preparos.
De vez em quando,
chegava ao quarto um som cavo e difuso, que me assustava e que a minha avó
imediatamente dizia: “ São as betas da prima Maria Ezequiel a raspar no chão. O
ti Manel deve estar a dar-lhe de comer!!”. Outras vezes, ouviam-se passos muito
próximo da janela, eram os homens que saíam do lagar no turno da meia-noite e
outros que iam entrar no turno seguinte. Os passos ecoavam no quarto muito nítidos e sonoros, por vezes, ouviam-se
vozes abafadas, tosses cavernosas e o pigarro nas gargantas do tabaco de
onça.
Naquele quarto não nos
sentíamos isolados do mundo, pois ruídos vindos de todos os lados, emprestavam
ao ambiente uma aura de mistério, de medo e ao mesmo tempo de companhia.
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