Vitalino e Amélia |
Rita
tem 85 anos. Olha-se no espelho e não aceita a velhice; está lúcida e faladora
como sempre. O seu corpo encolheu quase 50 centímetros; a mulher elegante, esbelta e magra que sempre
foi, tornou-se numa velhinha de costas encurvadas, muito enrolada, com enorme
dificuldade em chegar a tudo que esteja a mais de meio metro dos seus braços. Todos
os movimentos diários que é obrigada a
fazer, como pentear-se, vestir-se, tomar banho, limpar-se, vestir os collants e calçar os chinelos
tudo isso é feito com enorme sofrimento, esforço e dificuldade. As pernas fracas não a deixam
caminhar nem passear como sempre gostou. Olha-se no espelho e questiona-se como
é que chegou a este ponto!? Como é que em pleno século XXI, ninguém descobriu
ou não houve um tratamento para que isto não lhe acontecesse a ela!!! Ela que tanto gostava da sua figura bonita, de grandes olhos meigos, rosto perfeito, na
boca de lindos dentes brancos e direitos, o sorriso inconfundível sereno, meigo
...
Os
desgostos ao longo da sua vida, tão em quantidade quanto as alegrias ( a
falência e a necessidade de toda a família partir da aldeia para Lisboa,
procurar uma novo modo de vida, a morte do sogro, a morte da sogra, a morte da
mãe, a ida do filho para a guerra do ultramar, a morte da neta) , foram-se
alojando em cima das suas costas. Camada a camada foram carregando, carregando,
até que a tornaram numa velhinha encolhida, pequenina, sem um resquício do que
foi Rita, que sempre teve vaidade na sua esbelta figura.
Rita
nasceu no seio de uma família de comerciantes, onde não havia dificuldades
económicas, pois o pai sempre procurou dar-lhes todo o conforto e bem estar que
necessitavam. Mas, com oito anos, ficou orfã de pai. Quando o pai morreu com 38
anos, a mãe já tinha tido sete
gravidezes e estava grávida de 5 meses. Quando a bébé nasceu ficaram a viver na
grande e acolhedora casa a mãe, a Rita e
mais 4 irmãos ( dois irmãos tinham morrido antes da morte do pai, uma bébé com
ano e meio e outro à nascença). Ela era a mais velha, por isso, mal acabou a
instrução primária, ficou em casa onde ajudava com maneiras de menina crescida,
nas lides domésticas e na loja.
A
família sempre tinha vivido com os ganhos do estabelecimento comercial que o
pai explorava, tinham o depósito do tabaco que fornecia toda a aldeia e os
montes vizinhos; na loja vendia-se de tudo, desde os principais bens de
consumo, fazendas, roupa interior, calçado, petróleo, materiais de construção
como pregos, ferramentas e todos as alfaias agrícolas, de que os trabalhadores
rurais precisavam para trabalhar no campo, enxadas, foices, sachos, chapéus de
palha, etc. etc... Naquela loja fornecida com mercadorias encomendadas aos
caixeiros viajantes, das casas comerciais das principais cidades, os clientes
podiam encontrar tudo o que necessitavam, pois vendia-se de tudo, como era
hábito na província.
Depois
da morte do pai, Rita sabia que a vida nunca mais seria a mesma, pois era o pai
quem orientava os negócios, quem comprava e vendia e tinha um grande espírito
empreendedor. Era um homem que tinha ambições, que sabia que a vida naquela
pequena aldeia onde a maioria da população era formada por gente analfabeta,
que trabalhava nos campos, de pequenos seareiros e meia dúzia de homens ricos,
que davam trabalho nas suas herdades à grande maioria da população, não era a
vida que ele desejava para os seus filhos. Muitas vezes dizia para a mãe de
Rita que queria trabalhar muito, para poder ter dinheiro afim de dar um curso
aos filhos; assim os filhos poderiam sair da aldeia, para irem trabalhar nas
profissões que escolhessem, para terem uma vida futura mais equilibrada e
desafogada. Mas quando lhe surgiu aquele acidente vascular, tanto ele como a
mulher começaram a perder as esperanças de que isso pudesse vir a acontecer.
Estávamos
em 1938, início da 2ª Guerra Mundial. Depois da morte do pai, a mãe era o pilar
da casa. Cuidou, tratou e educou os filhos o melhor que pôde e soube. Deu-lhes
muito amor e muito carinho, e ao mesmo tempo uma educação rígida. Mas aqueles tempos
eram tempos difíceis. A mãe começou a não poder encomendar e comprar tanta
mercadoria como no tempo do pai. As prateleiras da loja começaram a ficar mais
vazias, os fregueses iam comprar a outro lado, e aqueles que continuavam fiéis
compravam muito pouco e muitas vezes fiado. Pouco a pouco, a família começou a
sentir algumas dificuldades. Despediram a criada que tinham a tempo inteiro, a
dormir e a comer, pois Rita já estava crescidinha o suficiente para tomar conta
dos irmãos e da casa, enquanto a mãe ficava a trabalhar na loja. Os irmãos
vinham da escola e ajudavam a mãe na loja. Assim, iam vivendo e crescendo...
Quando
tinha 12 anos, Rita pediu à mãe que a deixasse ir tirar o corte de costura,
depois de muita insistência dela, a mãe
deixou, mas a mãe foi criticada pela família, por Rita ser ainda muito nova
para tamanha responsabilidade. Mas a sua força de vontade, a sua capacidade de
aprender foram mais fortes e com 14 anos Rita já costurava para toda a família.
Fazia os vestidos, as saias, as combinações, os casacos compridos tanto para a
mãe como para as irmãs; para os irmãos fazia-lhes as camisas, os pijamas, as
calças que eram cortadas no alfaiate e cozidas por ela, os casacos. Começou
também a fazer camisolas de malha para todos lá de casa. Aprendeu a cozinhar
aos poucos foi-se tornando numa pequena dona de casa. Rita cresceu e tornou-se numa mulherzinha
muito responsável, era muito desenvolvida fisica e intelectualmente para a
idade e quando a mãe tinha momentos de desânimo, pois a vida não estava a ser nada
fácil, ela sempre lhe dava coragem e força para continuar.
Quando
tinha 12 anos começou a namoriscar o rapaz que mais tarde foi o seu marido. Quando
a mãe de Rita desconfiava que ela estava à porta a espreitar o namorado, mandava-a
imediatamente para dentro e muitas vezes lhe bateu, por ela “andar de cabeça no
ar!” e começar a pensar “em namoro” ainda tão nova!.
Como a mãe era viúva, não saía de casa, ( era
assim a vida de uma viúva numa aldeia! ) , então Rita quando queria ir aos
bailes tinha que pedir e insistir com a tia Alice para que fosse com ela, pois
caso contrário, a mãe não a deixava ir com mais ninguém. Quando havia cinema ou
circo na aldeia, Rita ia com os irmãos que já eram crescidos para lhe fazerem
companhia. Passear com as amigas era só em dias de festa ou em dias especiais.
Todo o tempo era para trabalhar em casa.
Quando
Rita tinha 18 anos, a irmã do meio, com 13 anos, começou a ficar doente. Cada vez estava mais
doente. Estava de cama, muito debilitada, muito mal. Rita acompanhou-a e deu-lhe toda a assistência, até que esta
acabou por morrer de tuberculose. Era Rita quem lhe preparava as refeições,
quem a tratava, quem lhe dava todo o carinho que a irmã precisava, pois a mãe,
depois de tantos desgostos estava muito, mas muito em baixo psicologicamente.
Mais uma vez, naquela casa entrou a tristeza, o desânimo, mas todos esses
incidentes fizeram com que a família ficasse cada vez mais unida. Os filhos
adoravam aquela mãe coragem que tanto sacrificou para que nada lhes faltasse.
Rita,
casou com 20 anos. Sabia que a esperava uma vida de trabalho, o marido tinha
comércio e para ela estava destinado o trabalho na loja, o trabalho na
salsicharia, o criar os dois filhos, o dar assistência à casa e à família,
sempre, mas sempre com um lindo sorriso naquela boca de romã, decorada com os
seus dentes alvos a sobressaírem do vermelho natural dos belos lábios...
Zuzu
Zuzu
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