OS NOSSOS ESCRITOS
TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
POESIA, CONTOS E OUTROS TEXTOS TRABALHADOS NA AULA
domingo, 13 de janeiro de 2013
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
Gosto de poesia
E de contos também
Ambos têm magia
Da Casa Branca lá vem
A nossa mestra Zuzu
Espera que não falte ninguém
Mesmo eu ou até tu!
Por isso, minhas amigas
Não faltem a esta aula
Pois elas não são cantigas
Até me enchem a alma.
O meu talento não é
Como o da Eglantina
Mas eu faço um finca-pé
por esta disciplina!
NERO
Sentia-se cada vez pior. Agora nem
a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou,
estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava
sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado.
É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira,
dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era
só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal,
debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a
Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera.
Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira.
Chuva, geada,
sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das
costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar
ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga.
Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por
outra. Não que fizesse grande finca-pé naquela amizade. Longe disso. A menina
dos seus olhos era a morgada, a filha, que o acariciava como a uma criança. A
velha toda a vida o pusera a distância. Dava-lhe o naco da broa (honra lhe
seja), mas borrava a pintura logo a seguir: - Ala! E ele retirava-se
cerimoniosamente para o ninho.
Só a
rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos anos fora, o
consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e fria, ia
cobrindo o telhado. O velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida
lhe corria e chegava dos bens de testa desenrugada, punha-lhe a manápula na
cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo. Porque o seu
verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia
na terra nas férias de Natal. Mas nessa altura pertencia-lhe inteiramente. Os
outros apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino tivesse cão quando
chegasse.
Apesar disso, no íntimo, considerava-se propriedade dos três: da filha, do
velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oito anos de
existência. Com eles passara invernos, outonos e primaveras, numa paz de
família unida. Também estimava o outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas
amizades cerimoniosas não se davam com o seu feitio. Gostava era da voz
cristalina da dona nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do
velhote.
-
Tens o teu patrão aí não tarda, Nero…
O nome
fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera, não tinha
chamadoiro. Nesse tempo não passava dum pobre lapuz sem apelido, muito gordo,
muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe lambia o pêlo e o
reconduzia à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o via afastar-se.
Pouco mais. Com dois meses apenas, fez então aquela viagem longa, angustiosa,
nos braços duros dum portador. Mas à chegada teve logo o amigo acolhimento da
patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de café. De tal maneira, que quase
se esqueceu da teta doce onde até ali encontrava a bem aventurança, e dois
irmãos sôfregos e birrentos.
- Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!
A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanhado
de broa, de caldo, ou de um migalho de toucinho. E acabou por entender. Era
Nero. E ficou senhor do nome, do seu nome, como da sua coleira. Principalmente
depois que o patrão novo chegou, sério, com dois olhos como dois faróis.
Apareceu à tarde, num dia frio. Fora-o esperar na companhia da patroa. É claro
que nem sequer lhe passara pela idéia a vinda de semelhante figurão. Seguira-a
maquinalmente, como fazia sempre que a via transpor a porta. Habituara-se a isso
desde os primeiros dias. Com o velho não ia tanto. E com a velhota, então só
depois de ter certeza que se encaminahava para os lados da Barrosa. Na cardenha
do casal morava o seu grande amigo, o Fadista. De maneira que o passeio, nessas
condições, já valia a pena. Enquanto a dona mondava o trigo, chasquiçava
batatas ou enxofrava a vinha, aproveitava ele o tempo na eira, de pagode com o
camarada. Mas, se ela tomava outro rumo, boa viagem. Com a nova, sim. A
farejar-lhe o rosto, conhecera a terra de lés-a-lés. Até a missa ouvia aos
domingos, coisa que nenhum cão fazia. Aninhava-se a seu lado, e ficava-se
quieto a ver o padre, de saias, fazer gestos e dizer coisas que nunca pode
entender. Foi a seguir a uma cerimônia dessas que o doutor chegou à terra. Todo
mundo bem vestido, todo lorde. Quando viu aquele senhor beijar a rapariga,
atirou-lhe uma ladradela, por descargo de consciência. E o estranho, então,
olhou-o atentamente, deu um estalo com os dedos, a puxar-lhe pelos brios, e
teve um comentário:
- O demônio do cachrro é bem bonito! Envaideceu-se todo. Mas o homem perdeu-se
logo em perguntas à irmã, em cumprimentos a quem estava, sem reparar nele. E
não teve remédio senão segui-los a distância, num ressentimento provisório. Ao
chegar a casa, foi direto ao cortelho. E ali esteve uma boa hora á espera, a
morder-se de ansiedade. Por fim, o recém-vindo chamou do fundo da sala:
- Nero! Vem cá!
Era a posse. Havia naquela voz um timbre especial que o fez estremecer. Pela
primeira vez sentia que tinha realmente um dono. Contudo, lá arranjou forças
para se deixar ficar enrosacado na palha, salamurdo, a fingir que dormia.
Mas a ordem voltou logo a aseguir, mais forte, mais imperativa:
- Nero!
Ergueu-se. Subu os degraus da loja e, humilde e desconfiado, a
presentou-se.
O fulano acabara de jantar. No prato onde comera, jaziam, apetitosos, os restos
do frango pedrês que a patroa velha degolara de manhãnzinha. Apesar de o
desgraçado ser seu amigo (até em cima do lombo se lhe empoleirava), sentia
crescer a água na boca só de ver aqueles ossos descamados. Misérias... O
hóspede, porem, em vez de lhe acalmar a gula pecadora, pôs-se a fazer-lhe
festas, a apalpar-lhe a cabeça, a admirar-lhe a grossura do rabo, a
examinar-lhe as patas, e rematou a vistoria dessa maneira:
- Não há dúvida nenhuma: é um belo bicho!... Rosnou, insofrido. Outra vez a
mesma conversa de há bocado! Se guardasse o paletó e lhe desse o esqueleto do
seu compadre calçudo, melhor fazia!
Deu-lho, e a segur despediu-o com uma ordem seca, de quem gostava de ser
obedecido. No dia seguinte é que voltou à carga, e de que maneira! Não o largou
durante uma hora! Começara o calvário da educação.
Correu a princípio ao lenço enrolado, a cuida que se tratava de uma
brincadeira. Mas depois viu que o negócio era sério, que o sujeito tinna lá
qualquer coisa encasquetada.
- Vá buscar, Nero, vá lá...
Fez-se de desentendido. E o sacripanta, depois de insistir, de se cansar a ver
se o convencia por bem, larga-lhe uma vesgastada rija! A primeira que
apanhou...
Seguiu-se uma semana triste. Até que num sábado de madrugada saíram ambos para
os montes, ainda enevoados e cobertos de sincelo. Nunca deixara o ninho tão
cedo. Gostava das manhãs na cama, mornas, a dormitar. O galo acordava-o sempre
ainda o sol sonhava, a cantar-lhe mesmo ao pé, quase ao ouvido, uma lngalenga
parva, estridente, sempre igual. A princípio resmungava. Depois acostumou-se ao
fadário, e até estimava o despertador, só para ter o prazer de saborear os
lençóis. Mas naquele dia foi o doutor que lhe baeu no ferrolho. Andavam quase
de mal desde a última lição. Mandara-lhe buscar um ovo, e quebrara-o nos dentes,
sem querer. E vai logo um puxão valente de orelhas, sem dó nem piedade! Apesar
de ressentido por semelhante injustiça, ergueu-se. Comeu a broa e partiu atrás
dele. De repente, já nos montes do Pioledo, ouviu um ruído de coisa que levanta
voo, seguido de um estrondo de estarrecer. Que ricos tempos! Fugira tão
espavorido, tão desvairado, que batera de encontto à cepa de uma giesta! Cheio
de paciência, e até com certa ternura, o dono, então, chamou-o, acariciou-o,
incutiu-lhe confiança:
- Não tenhas medo, maluco! Sossega, que ninguém te faz mal!
Depois mostrou-lhe no chão um passarolho morto.
- Nero, boca lá, boca!
Era para buscar aquilo, pelos vistos... Desconfiado, chegou-se ao pé
- Traz cá!...
O bicharoco estava realmente defunto. Deitou-lhe os dentes. O que era a
inocência! Tinha cócegas na boca!... De repente, um cheiro forte, penetrante e
doce inundou-lhe as ventas, o estômago, o corpo inteiro! Foi a primeira hora de
sua vida... Depois disso é que os montes começaram a dizer-lhe coisas que até
ali nem de longe poderia suspeitar. Só então ficou a saber que por eles a cabo,
nas manhãs doiradas e calmas de janeiro, era um louvar a Deus de perdizes... E
que não havia nada melhor no mundo do que senti-los frios e firmes sob as
patas, quando o sangue fervia nas veias e o instinto pedia asas ao vento.
Colado àquela dureza gelada, a rastejar e a tremer de emoção, a vida sabia-lhe
à maior das venturas. Talvez que em certas ocasiões devesse caçar doutra
maneira. Ser mais despachado. Mas sentia as malvadas à frente do nariz e
sumia-se no chão, nem sabia se a esconder-se, se a prolongar o prazer. Porque a
princípio ainda cuidou que conseguiria assim agarrar alguma. Depois, não. Finas
como órgãos, no melhor da festa punham-se na alheta. E perdeu as ilusões.
Apesar disso, nunca deixara de se encolher, de tentar disfarçar o corpo sempre
que farejava perto, e, muitas vezes, tão estacado ficava, que era preciso o
dono empurrá-lo com a ponta da bota grossa.
- Entra, Nero, entra lá... Deita fora!
Não arrancava. Continuava pregado ao terreno, a namorar a imagem advinhada, a
encantá-la com os olhos ávidos e, sobretudo, a fruir quele gozo de sentir o
coração pulsar de encontro às fragas.
Até que uma ordem mais impaciente lhe diziam que eram horas. Dava a pancada. E
ficava-se depois a olhar a manhosa erguer-se apressada, rumorosa, e cair daí a
pouco, já passada ou feita num molho. Entrava de novo em ação. Num pronto,
entregava a pobre ao dono, tal como encontrara caída - viva ou morta. Nunca um
gesto sequer de piedade. Disso pesava lhe agora a consciência. Se estavam de
ponta-de-asa, as desgraçadas fugiam, gemiam, quase tinham voz de gente a pedir
compaixão. Nem a alma lhe bolia. A esse respeito, fora sempre surdo e cego.
Muitas vezes pensava se não seria por essa razão que lhe acontecera a desgraça
do Soitinho! Ninguém as fez que não as pague... Bem que desconfiara logo do
outro caçador. Aquele jeito de pegar na arma não lhe merecia confiança, não.
Mas mandava quem podia... Segue-se que estavam ainda praticamente a sair de
casa, quando um cheiro a perdigão lhe entrou em faca pelo nariz. Estacou ali
mesmo, no meio da estrada, voltado para a ribanceira. Ainda se lembrava
perfeitamente de ter ficado com a pata direita no ar, paralisada. Depois, a
tirar os ventos, foi andando cautelosamente. Até que se encontrou a dois palmos
de seu velho conhecido. Era um patriarca manhoso, de esporões em rosário pelas
pernas acima, que há anos lho moía a paciência. Trêz vezes - em três épocas
sucessivas - o pusera a tiro ao patrão, sem valer de nada. O velhaco abria as
asas, deixava o chumbo passar, e, sem ninguém mais a afligi-lo, ficava à
larga, a criar unto. Desta feita, porém, a coisa fiava doutra maneira. Iam
dois, e pudera previni-los a tempo e horas. E estava então com o focinho em
cima do excomungado, quando, o parvo da carroçeta lhe manda um tiro à cabeça!
Ficou ali como morto, e ainda por maior desgraça a ouvir a risada escarninha do
albarrão, ao dobrar o cerro, são e salvo! Trinta anos que durasse, não se
esqueceria nunca daquela hora. Todo o caminho ao colo do doutor, depois de lhe
ouvir dizer:
- Uma estupidez destas, só tinha uma resposta... Duas semanas de molho, e,
diga-se a verdade, também de ternuras, de cuidados, de comidinha da boa. Por
fim la arribou, e a brincadeira ficou-lhe de emenda. Nunca mais correu a
foguetes. Quem quer que fosse, podia chamar e assobiar à vontade. Nem se mexia.
Às vezes, rilhadinho de vício. Mas não ia. Esperava pelo dono, que atirava
quando devia, e vamos indo!. Errar, todos erravam, infelizmente. Ainda estava
para nascer o primeiro qe pudesse gabar do contrário. Pelo menos à sua
frente... Pexotices de uma pessoa se benzer! Mas, enfim, o dono não era lá dos
piores, e largava o tiro na altura própria, honradamente, quando elas
repinicavam as castanholas no ar. Por isso, aguardava que viesse.
Nem as férias do fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caçadas de menos
risco que poderiam juntos pela freguesia... Era um cão que se respeitava, que
tinha dignidade. Borgas dessas eram lá com rafeiros, com jecos do fado e do
mundo. O que não quer dizer que fosse nenhm maricas! Tratava de arranjar a vida
( a sua vida particular) sem dar nas vistas e sem acompanhamentos, que acabavam
sempre em cenas desagradáveis. Não que fosse medo a qualquer dos rufias que
constumam aparecer nessas ocasiões. Se acontecia ver-se metido nelas, batia-se
ali como um homem, até que as coisas ficassem esclarecidas. Tocava a quebrados,
dava a matar. E nunca ficara do lado dos vencidos! Pelo contrário. Procurava,
contudo, afastar-se de rixas e contendas. E dissera sempre que não ao amigo,
por sinal um belíssimo animal, apesar da baixa extracção. Morrera há um ano, o
desgraçado. Que fazia! A guarda espalhou as bolas, e foi a eito. Valeu-lhe a
ele estar à argola nessa data. Senão, era uma vez um Nero. Que, para chegar à
miséria presente, antes tivesse morrido também. Ao menos deixava saudades.
Assim, acabava de velhice, podre por dentro, a meter fastio a toda gente. Se
então o levasse o diabo, não haviam de faltar lamúrias e lágrimas naquela casa.
Agora, lia nos olhos de todos o desejo de que partisse o mais depressa possível
para dar lugar a outro... E quem seria o o felizardo, que lhe herdaria o ninho?
Quem viria ouvir as longas conversas à lareira, no inverno, quando a chuva
escorregava dos beirais e o vento norte soprava? Tanto pensara no filho, no seu
Jau, para o render ali! Mas o raio herdara os defeitos da mãe: mau nariz e um
poudo de sofreguidão. Não se aguentava com elas ao pé. Lá no abocar e trazer à
mão, saíra ao lençol de cima: nem sequer o ovo da educação quebrara. Uns
dentinhos de veludo. A alegria que tivera a primeira vez que o viu amarrado
junto de sí! Deitou-lhe o canto do olho, e o pequeno parecia uma estátua: teso,
esticado, o rabo como uma seta... Nos montes de Queda, lembrava-se bem. Iam a
mata-cavalos num rasto, quase sem tomar respiração. A prever já o resultado da
correria, tentava deitar água na fervura:
- Mais devagar, rapaz, mais devagar...
Mas o demônio tinha os nervos da mãe. Puxava como um dragão pela encosta acima.
E ele seguia-o no andamento, a tentar encobrir o estabanado.
- Calma! Calma!
Nada! Aquele cheiro arrastava-o, endoidecia-o.
- Isto não vai a matar, homem de Deus...
Até que chegaram perto do bando. Fez-lhe sinal, estacou, e o garoto ficou-se
também. Mas, as perdizes saltavam e, quando o dono chegou, deu com o nariz no
sedeiro. À noite, uma grade às costas, coisaá que não acontecia há anos. E ao
cabo de mais três ou quatro dias de experiência, o doutor deu-o a um aldeagante
de Jurlais. Viera vê-lo uma vez, pelo S. Miguel. Pediu-lhe a benção e contou.
Até fominha! Depois lá se foi, coitado. E podia estar ali a receber-lhe o último
suspiro e a herdar-lhe o ninho de musgo. Sempre era ter alguém da família ao
lado. Assim, morria sozinho, tristemente. Nem o ordinário do galo, com quem
tanta paciência tivera, nem esse vinha! Andava pelo quinteiro, muito asno,
muito parvo, como se mesmo a dois passos não estivesse a acontecer aquela
grande desgraça. É certo que também ele, Nero, vira morrer o gato, um
sem-número de frangos e galinhas, e cada ano seu porco; sem o menor
estremecimento. A verdade acima de tudo. Mas, desta vez, o caso mudava de
figura: finava-se um cão, um cão de caça, um navarro legítimo! Ingratidões...
Porque, apesar de perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à raposa e à
doninha, quando na capoeira parecia a semana santa?! Ele. Ele, Nero que
entregava a alma ao Criador, ali, desdentado, com as urinas em sangue, cego
duma vista... E o que ele fora na mocidade! Ágil, asado, até mesmo toleirão...
Os enganos do mundo!
Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da goridura na sertão Dantes,
seria o bastante para lhe correr a baba pela barbelas abaixo. Agora, só a
lembrança de torresmos dava-lhe volta ao estômago. Uma perfeita ruína! Estava
podre por dentro e por fora… Raio de vida! E o malandro do galo a galar a
galinha! Tivesse ele procedido doutra maneira, quando o parvo era frangote, e
já então cheio de proa, e não estaria agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas
era feio um navarro dar um apertão num frango. Saiba um homem respeitar-se. Que
grande dor de cabeça!... Que peso medonho na arca do peito!... E o corpo mole,
sem acção…
Aí vinha a patroa nova observar o andamento daquilo…
Fechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o visse como morto…
Ela chegou-se e ficou silenciosa.
Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara.
Chorava. Desceu novamente as pálpebras, feliz.
E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S.
Domingos, lá longe, pareciam já ter saudade das suas patas seguras e delicadas,
quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a
anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do
juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.
_____
Fonte:
TORGA, Miguel. Os bichos. Coimbra: Edições do Autor, 1995.
O MENINO JESUS BRINCANDO
Oh meu Jesus adorado
Fecha os teus olhos divinos
Num soninho descansado;
Que a não sermos tu e eu
Todo a gente do povoado,
Desde os velhos aos meninos,
Há muito que adormeceu.
E o Menino Jesus não se dormia ...
Dorme, dorme, dorme agora
(Cantava a Virgem Maria)
Que mal assomou a aurora,
Sentei-me junto ao tear
E por todo o dia fora,
Até que já se não via,
Não deixei de trabalhar!
Mais triste, mais
abatida,
Pedia a Virgem Maria:
Tem pena da minha
vida,
Que se a quero é para
ti...
Vida aflita e dolorida!
Só por ti a viveria
Tão longe de onde
nasci!...
E o Menino Jesus não
se dormia…
|
E o Menino Jesus não se dormia…
Tornava Nossa Senhora,
Numa voz mais
consumida:
Dorme, dorme, dorme
agora
E que eu descance
também,
Porque mesmo
adormecida
Vela sempre, a toda a
hora,
No meu peito, o amor
de mãe.
E o Menino Jesus não
se dormia…
Numa voz mais
fatigada,
Tornava a Virgem
Maria:
Dorme pombinha nevada,
Dorme, dorme, dorme
bem ...
Vê que está quase
apagada
A frouxa luz da bugia,
E a voz da Virgem volveu:
Repara no meu olhar,
Vê como ele
entristeceu...
Dorme, dorme, dorme
bem,
Oh alvo lírio do céu!
Olha que estou a
chorar,
— Tem pena da tua mãe!
Nosso Senhor, então,
adormeceu …
|
Do pouco azeite que
tem.
E o Menino Jesus não
se dormia…
Rogava Nossa Senhora:
Modera a tua alegria
...
Não deites a roupa
fora
Do teu leito pequenino
...
Não rias mais. Dorme
agora
E brincarás todo o dia
...
Dorme, dorme, meu
menino.
E o Menino Jesus não
se dormia…
|
Poema de Augusto Gil
(1916)
SEBASTIÃO DA GAMA
Sebastião da Gama foi um grande amigo que passou pela minha
vida e me marcou muito.
Veio para Estremoz ainda novo, para ser professor e deixou
marca em todos os seus alunos. Todos o recordam com muita saudade.
Equanto esteve nesta cidade, pertenceu a um grupo de amigos
do qual faziam parte o meu irmão Anibal, o Vermelho, o meu marido Jacinto e Armando Carmelo, entre outros.
Muitas vezes, me
emprestou livros que depois de lidos, eu tinha que comentar com ele.
Foi das primeiras pessoas a despertarem em mim o gosto pela
poesia que ainda hoje perdura. Depois de casado para aqui veio viver. Recordo o
convite ou participação de casamento
completamente fora do que era habitual e que, ainda hoje não sei como se
extraviou.
Sebastião da Gama sofria de uma tuberculose renal que o
levou bem cedo. Estava eu, numa aula no
Magistério em Évora e tinha levado um
exemplar dos Brados do Alentejo que ainda não tinha aberto.
Enquanto a professora dava a aula e estava distraída eu abri
o jornal e logo na primeira página ao lado do retrato do meu amigo a notícia da
sua morte.
Difícil é explicar o que senti. Cairam-me as lágrimas e foi
o primeiro grande desgosto da minha vida.
Nasceu em Lisboa no
dia 10 de Abril de 1924 e faleceu no dia 7 de Fevereiro de 1952
Texto escrito por Maria Helena Alves
Academia Sénior de Estremoz
Outubro de 2012
COMO CONHECI O POETA SEBASTIÃO DA GAMA
Era
ainda jovenzinha
Sentada
na cadeirinha
Frente
à janela com grades
Tristonha
ou a chorar
Tinha
que isolada estar
Naquela
cela dos frades
|
Com o seu cachecol
ao pescoço
Aquele poeta moço
Era um lírico a
falar
Tinha palavras tão
belas
Parecia falar para as
estrelas
E eu comovida a
escutar
|
Que
não se esqueça ninguém
Do
homem que aqui e além
Escreveu
tão lindas poesias
Tão
cedo a noite ceifou
A
vida que nos deixou
Saudades
e alegrias
|
|
Olhos fitos na
sacada
Às vezes ainda
fechada
Que para o laranjal
dava
Esperava vê-lo
chegar
Para as suas aulas
dar
Aos alunos que ele
amava
|
Pássaros cantai baixinho
Deixai-me
ouvir o divino
Chilreai
mais em segredo
Não
tarda nada é já hora
Do
professo ir embora
E
da noite eu já tenho medo
|
Disciplina Poesia e contos
Poema
elaborado por Lúcia Cóias
Estremoz
25 de Outubro de 2012
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