OS NOSSOS ESCRITOS

TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
POESIA, CONTOS E OUTROS TEXTOS TRABALHADOS NA AULA

terça-feira, 5 de março de 2013

O GRITO


                                                               GRITO

O GRITO
Grito e gritarei as vezes que eu quizer

Por aqueles que têm fome e não têm pão

Grito,e gritarei quando puder

Por quem não pode suportar a solidão.

 

Grito, por quem sofre num leito de hospital

Sem alguém que lhe dê um carinho e atenção

Grito contra a força demoníaca do mal

 Pela falta de justiça e contra a corrupção.

 

Grito por aquele que desfalece a lutar 

E fica sem um tecto e sem abrigo

Grito, por quem os filhos não pode sustentar

E por aquele que se vê só, sem um amigo.

 

Grito, por aqueles que têm que emigrar

Deixando a Pátria que um dia os viu nascer

Grito porque levam o coração a sangrar

Deixando cá, os velhos pais a sofrer.

 
Grito, pelos idosos empurrados p’ra um lar

E vão esperando a morte em lentidão

Grito, porque em casa já não têm lugar

E o resto da vida vai ser só recordação.

 
Grito pelo nosso país sem solução

Pelo desemprego a pairar na sociedade

Grito, por aquele que chora com razão

Pelo ódio entre os povos, contra a desigualdade.

 
Grito, pela liberdade de expressão

Contra a ganância, contra a ânsia do poder

Grito, e gritarei do fundo do coração

Grito, e gritarei sempre, até morrer!

Poema de Lúcia Cóias          Fevereiro 2013

NÃO TE RENDAS MEU POVO


NÃO TE RENDAS MEU POVO

Não te rendas meu povo, não te rendas

Às mãos de quem te quer voltar a ver

Cativo e desgraçado não te vendas

Aqui, nada mais temos a vender

 

Não te cales meu povo, que a saudade

Já não pode roer dentro de nós

Se o teu punho constrói a liberdade

Levanta ainda mais a tua voz

 

Não te rendas meu povo, não te rendas

Já nos querem sós e divididos

Já nos querem fracos e calados

 

Não te rendas meu povo, não te rendas

Não te cales meu povo, não te cales

Quando nos quizerem já vencidos

Hão-de ter-nos de pé e perfilados

Não te rendas meu povo, não te rendas

 

Letra: Joaquim Pessoa

Música:João Fernando

sexta-feira, 1 de março de 2013

POEMAS SOBRE O 25 DE ABRIL

No dia 24 de Abril , vai realizar-se uma sessão na Biblioteca Municipal de Estremoz para comemorar o dia 25 de Abril de 1974. A Academia Sénior de Estremoz vai participar, por isso a disciplina de Poesia e Contos  fez uma recolha de poemas relacionados com esta data, tão importante para o povo português.
Escolhemos poemas de:

“Vejam bem”


Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar

Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar

E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de de febre a arder

Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer

Vejam bem
daquele homem a fraca figura
desbravando os caminhos do pão
desbravando os caminhos do pão

E se houver
uma praça de gente madura
ninguém vai
ninguém vai levantá-lo do chão



Zeca Afonso in Cantares de Andarilho (1968)

Publicado por bibliobeiriz em Abril 13, 2010
Um poema dedicado ao 25 de Abril
Antes e depois
Dias longos nostalgia
espelhada em cada rosto português
uma amargura que ainda hoje se vê
nos filhos dos filhos daquele tempo
que na flor da idade
iam para a guerra longe
sem saberem bem para onde
nem para quê

o horizonte europeu fronteira de Castela
estava bem fechado
ninguém saía nem entrava
pides guardas fiscais carabineiros
cerravam bem fileiras
disparando sobre quaisquer aventureiros
num Portugal amordaçado
sem liberdade nem pão nem educação

país arcaico empobrecido analfabeto
que sem tostão nem ganha pão
clandestinamente emigrava
fugir era o sonho ficar o pesadelo

na nossa própria casa aprisionados
na nossa própria casa condenados
degredo guerra pensamento censurado
um país grande em história
por décadas adiado

bravo foi o grito que soou
o sonho que chegou
“25 de Abril de 1974”
o meu país em festa

pontapé na guerra chuto nas masmorras
Portugal livre nas palavras
meu país velhinho a nascer de novo
os cravos eram as flores
a liberdade a esperança nova

Portugal respirava cantava renascia

a Europa aplaudia o mundo ansiava
o colonialismo acabava

hoje evocando aquela data
só lamento
o tempo perdido
as vidas ceifadas
a Pátria adiada para nada!

O poema faz parte de uma coletânea de poemas com o título "PORTUGAL PERIFÉRICO OU...O CENTRO DO MUNDO?", que pode ser visto e consultado no link da Editora:
Revolução — Descobrimento  
Revolução isto é: descobrimento
Mundo recomeçado a partir da praia pura
Como poema a partir da página em branco
— Katharsis emergir verdade exposta
Tempo terrestre a perguntar seu rosto
Sophia de Mello Breyner    in O Nome das Coisas, 1977

A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.
Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.
Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Sidónio Muralha  Poemas de Abril. Lisboa : Prelo, 1974
Publicado por bibliobeiriz em Abril 15, 2010
Oh Abril!

Abril deu-me asas
e convidou-me a ouvir
baladas diferentes
Segui-o,
segui-o a pensar
que hei-de sempre
aprender
se for para a frente
Segui-o com a convicção
do poder
me contentar
com o que ele me quiser
prendear
porque o ouro já possuo
no meu coração.
Oh Abril Esperança,
que me leva a aventurar
Em céus
com as cores do arco-iris
Oh Abril, que abres as portas
dos lares solitários
e invades os jardins
com risos infantis
Oh Abril
o sol também brilha
na cabeça do velhinho
que aspira a um cantinho
numa janela adornada
de mangericos
para seguir a memória longínqua
Oh Abril, a brisa também
suave suspira
no doente
que adormece
sob o olhar quente
duma alma carinhosa
que ainda e crente
Oh Abril
se possível fosse
dar-te a mão
e levar-te aos carentes
aos famintos
aos sedentos
e fazer nascer jardins
e fazer jorrar a água
das fontes ressequidas
pelo mau tempo
erigia-te um templo.


Diana de Moura, Halifax, Canadá
email: diana@portugal-linha.pt
 


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Gosto de poesia

Gosto de poesia
E de contos também
Ambos têm magia
E ouvi-los sabe bem.

Da Casa Branca lá vem
A nossa mestra Zuzu
Espera que não falte ninguém
Mesmo eu ou até tu!

Por isso, minhas amigas
Não faltem a esta aula
 Pois elas não são cantigas
Até me enchem a alma.

O meu talento não é
Como o da Eglantina
Mas eu faço um finca-pé

por esta disciplina!


 SÃO


NERO



       Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira.
       Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males… Já que não havia melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez por outra. Não que fizesse grande finca-pé naquela amizade. Longe disso. A menina dos seus olhos era a morgada, a filha, que o acariciava como a uma criança. A velha toda a vida o pusera a distância. Dava-lhe o naco da broa (honra lhe seja), mas borrava a pintura logo a seguir: - Ala! E ele retirava-se cerimoniosamente para o ninho.
        Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos anos fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e fria, ia cobrindo o telhado. O velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se a vida lhe corria e chegava dos bens de testa desenrugada, punha-lhe a manápula na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo. Porque o seu verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia na terra nas férias de Natal. Mas nessa altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino tivesse cão quando chegasse.
         Apesar disso, no íntimo, considerava-se propriedade dos três: da filha, do velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oito anos de existência. Com eles passara invernos, outonos e primaveras, numa paz de família unida. Também estimava o outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades cerimoniosas não se davam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote.
         - Tens o teu patrão aí não tarda, Nero…
         O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera, não tinha chamadoiro. Nesse tempo não passava dum pobre lapuz sem apelido, muito gordo, muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe lambia o pêlo e o reconduzia à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o via afastar-se. Pouco mais. Com dois meses apenas, fez então aquela viagem longa, angustiosa, nos braços duros dum portador. Mas à chegada teve logo o amigo acolhimento da patroa nova. Festas no lombo, leite, sopas de café. De tal maneira, que quase se esqueceu da teta doce onde até ali encontrava a bem aventurança, e dois irmãos sôfregos e birrentos.
           - Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!
           A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanhado de broa, de caldo, ou de um migalho de toucinho. E acabou por entender. Era Nero. E ficou senhor do nome, do seu nome, como da sua coleira. Principalmente depois que o patrão novo chegou, sério, com dois olhos como dois faróis. Apareceu à tarde, num dia frio. Fora-o esperar na companhia da patroa. É claro que nem sequer lhe passara pela idéia a vinda de semelhante figurão. Seguira-a maquinalmente, como fazia sempre que a via transpor a porta. Habituara-se a isso desde os primeiros dias. Com o velho não ia tanto. E com a velhota, então só depois de ter certeza que se encaminahava para os lados da Barrosa. Na cardenha do casal morava o seu grande amigo, o Fadista. De maneira que o passeio, nessas condições, já valia a pena. Enquanto a dona mondava o trigo, chasquiçava batatas ou enxofrava a vinha, aproveitava ele o tempo na eira, de pagode com o camarada. Mas, se ela tomava outro rumo, boa viagem. Com a nova, sim. A farejar-lhe o rosto, conhecera a terra de lés-a-lés. Até a missa ouvia aos domingos, coisa que nenhum cão fazia. Aninhava-se a seu lado, e ficava-se quieto a ver o padre, de saias, fazer gestos e dizer coisas que nunca pode entender. Foi a seguir a uma cerimônia dessas que o doutor chegou à terra. Todo mundo bem vestido, todo lorde. Quando viu aquele senhor beijar a rapariga, atirou-lhe uma ladradela, por descargo de consciência. E o estranho, então, olhou-o atentamente, deu um estalo com os dedos, a puxar-lhe pelos brios, e teve um comentário:
           - O demônio do cachrro é bem bonito! Envaideceu-se todo. Mas o homem perdeu-se logo em perguntas à irmã, em cumprimentos a quem estava, sem reparar nele. E não teve remédio senão segui-los a distância, num ressentimento provisório. Ao chegar a casa, foi direto ao cortelho. E ali esteve uma boa hora á espera, a morder-se de ansiedade. Por fim, o recém-vindo chamou do fundo da sala:
            - Nero! Vem cá!
            Era a posse. Havia naquela voz um timbre especial que o fez estremecer. Pela primeira vez sentia que tinha realmente um dono. Contudo, lá arranjou forças para se deixar ficar enrosacado na palha, salamurdo, a fingir que dormia.
             Mas a ordem voltou logo a aseguir, mais forte, mais imperativa:
             - Nero!
             Ergueu-se. Subu os degraus da loja e,  humilde e desconfiado, a presentou-se.
             O fulano acabara de jantar. No prato onde comera, jaziam, apetitosos, os restos do frango pedrês que a patroa velha degolara de manhãnzinha. Apesar de o desgraçado ser seu amigo (até em cima do lombo se lhe empoleirava), sentia crescer a água na boca só de ver aqueles ossos descamados. Misérias... O hóspede, porem, em vez de lhe acalmar a gula pecadora, pôs-se a fazer-lhe festas, a apalpar-lhe a cabeça, a admirar-lhe a grossura do rabo, a examinar-lhe as patas, e rematou a vistoria dessa maneira:
              - Não há dúvida nenhuma: é um belo bicho!... Rosnou, insofrido. Outra vez a mesma conversa de há bocado! Se guardasse o paletó e lhe desse o esqueleto do seu compadre calçudo, melhor fazia!
              Deu-lho, e a segur despediu-o com uma ordem seca, de quem gostava de ser obedecido. No dia seguinte é que voltou à carga, e de que maneira! Não o largou durante uma hora! Começara o calvário da educação.
              Correu a princípio ao lenço enrolado, a cuida que se tratava de uma brincadeira. Mas depois viu que o negócio era sério, que o sujeito tinna lá qualquer coisa encasquetada.
              - Vá buscar, Nero, vá lá...
              Fez-se de desentendido. E o sacripanta, depois de insistir, de se cansar a ver se o convencia por bem, larga-lhe uma vesgastada rija! A primeira que apanhou...
              Seguiu-se uma semana triste. Até que num sábado de madrugada saíram ambos para os montes, ainda enevoados e cobertos de sincelo. Nunca deixara o ninho tão cedo. Gostava das manhãs na cama, mornas, a dormitar. O galo acordava-o sempre ainda o sol sonhava, a cantar-lhe mesmo ao pé, quase ao ouvido, uma lngalenga parva, estridente, sempre igual. A princípio resmungava. Depois acostumou-se ao fadário, e até estimava o despertador, só para ter o prazer de saborear os lençóis. Mas naquele dia foi o doutor que lhe baeu no ferrolho. Andavam quase de mal desde a última lição. Mandara-lhe buscar um ovo, e quebrara-o nos dentes, sem querer. E vai logo um puxão valente de orelhas, sem dó nem piedade! Apesar de ressentido por semelhante injustiça, ergueu-se. Comeu a broa e partiu atrás dele. De repente, já nos montes do Pioledo, ouviu um ruído de coisa que levanta voo, seguido de um estrondo de estarrecer. Que ricos tempos! Fugira tão espavorido, tão desvairado, que batera de encontto à cepa de uma giesta! Cheio de paciência, e até com certa ternura, o dono, então, chamou-o, acariciou-o, incutiu-lhe confiança:
            - Não tenhas medo, maluco! Sossega, que ninguém te faz mal!
            Depois mostrou-lhe no chão um passarolho morto.
            - Nero, boca lá, boca!
            Era para buscar aquilo, pelos vistos... Desconfiado, chegou-se ao pé
            - Traz cá!...
            O bicharoco estava realmente defunto. Deitou-lhe os dentes. O que era a inocência! Tinha cócegas na boca!... De repente, um cheiro forte, penetrante e doce inundou-lhe as ventas, o estômago, o corpo inteiro! Foi a primeira hora de sua vida... Depois disso é que os montes começaram a dizer-lhe coisas que até ali nem de longe poderia suspeitar. Só então ficou a saber que por eles a cabo, nas manhãs doiradas e calmas de janeiro, era um louvar a Deus de perdizes... E que não havia nada melhor no mundo do que senti-los frios e firmes sob as patas, quando o sangue fervia nas veias e o instinto pedia asas ao vento. Colado àquela dureza gelada, a rastejar e a tremer de emoção, a vida sabia-lhe à maior das venturas. Talvez que em certas ocasiões devesse caçar doutra maneira. Ser mais despachado. Mas sentia as malvadas à frente do nariz e sumia-se no chão, nem sabia se a esconder-se, se a prolongar o prazer. Porque a princípio ainda cuidou que conseguiria assim agarrar alguma. Depois, não. Finas como órgãos, no melhor da festa punham-se na alheta. E perdeu as ilusões. Apesar disso, nunca deixara de se encolher, de tentar disfarçar o corpo sempre que farejava perto, e, muitas vezes, tão estacado ficava, que era preciso o dono empurrá-lo com a ponta da bota grossa.
            - Entra, Nero, entra lá... Deita fora!
            Não arrancava. Continuava pregado ao terreno, a namorar a imagem advinhada, a encantá-la com os olhos ávidos e, sobretudo, a fruir quele gozo de sentir o coração pulsar de encontro às fragas.
             Até que uma ordem mais impaciente lhe diziam que eram horas. Dava a pancada. E ficava-se depois a olhar a manhosa erguer-se apressada, rumorosa, e cair daí a pouco, já passada ou feita num molho. Entrava de novo em ação. Num pronto, entregava a pobre ao dono, tal como encontrara caída - viva ou morta. Nunca um gesto sequer de piedade. Disso pesava lhe agora a consciência. Se estavam de ponta-de-asa, as desgraçadas fugiam, gemiam, quase tinham voz de gente a pedir compaixão. Nem a alma lhe bolia. A esse respeito, fora sempre surdo e cego. Muitas vezes pensava se não seria por essa razão que lhe acontecera a desgraça do Soitinho! Ninguém as fez que não as pague... Bem que desconfiara logo do outro caçador. Aquele jeito de pegar na arma não lhe merecia confiança, não. Mas mandava quem podia... Segue-se que estavam ainda praticamente a sair de casa, quando um cheiro a perdigão lhe entrou em faca pelo nariz. Estacou ali mesmo, no meio da estrada, voltado para a ribanceira. Ainda se lembrava perfeitamente de ter ficado com a pata direita no ar, paralisada. Depois, a tirar os ventos, foi andando cautelosamente. Até que se encontrou a dois palmos de seu velho conhecido. Era um patriarca manhoso, de esporões em rosário pelas pernas acima, que há anos lho moía a paciência. Trêz vezes - em três épocas sucessivas - o pusera a tiro ao patrão, sem valer de nada. O velhaco abria as asas, deixava o chumbo passar, e, sem ninguém mais a afligi-lo, ficava à larga, a criar unto. Desta feita, porém, a coisa fiava doutra maneira. Iam dois, e pudera previni-los a tempo e horas. E estava então com o focinho em cima do excomungado, quando, o parvo da carroçeta lhe manda um tiro à cabeça! Ficou ali como morto, e ainda por maior desgraça a ouvir a risada escarninha do albarrão, ao dobrar o cerro, são e salvo! Trinta anos que durasse, não se esqueceria nunca daquela hora. Todo o caminho ao colo do doutor, depois de lhe ouvir dizer:
           - Uma estupidez destas, só tinha uma resposta... Duas semanas de molho, e, diga-se a verdade, também de ternuras, de cuidados, de comidinha da boa. Por fim la arribou, e a brincadeira ficou-lhe de emenda. Nunca mais correu a foguetes. Quem quer que fosse, podia chamar e assobiar à vontade. Nem se mexia. Às vezes, rilhadinho de vício. Mas não ia. Esperava pelo dono, que atirava quando devia, e vamos indo!. Errar, todos erravam, infelizmente. Ainda estava para nascer o primeiro qe pudesse gabar do contrário. Pelo menos à sua frente... Pexotices de uma pessoa se benzer! Mas, enfim, o dono não era lá dos piores,  e largava o tiro na altura própria, honradamente, quando elas repinicavam as castanholas no ar. Por isso, aguardava que viesse.
            Nem as férias do fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caçadas de menos risco que poderiam juntos pela freguesia... Era um cão que se respeitava, que tinha dignidade. Borgas dessas eram lá com rafeiros, com jecos do fado e do mundo. O que não quer dizer que fosse nenhm maricas! Tratava de arranjar a vida ( a sua vida particular) sem dar nas vistas e sem acompanhamentos, que acabavam sempre em cenas desagradáveis. Não que fosse medo a qualquer dos rufias que constumam aparecer nessas ocasiões. Se acontecia ver-se metido nelas, batia-se ali como um homem, até que as coisas ficassem esclarecidas. Tocava a quebrados, dava a matar. E nunca ficara do lado dos vencidos! Pelo contrário. Procurava, contudo, afastar-se de rixas e contendas. E dissera sempre que não ao amigo, por sinal um belíssimo animal, apesar da baixa extracção. Morrera há um ano, o desgraçado. Que fazia! A guarda espalhou as bolas, e foi a eito. Valeu-lhe a ele estar à argola nessa data. Senão, era uma vez um Nero. Que, para chegar à miséria presente, antes tivesse morrido também. Ao menos deixava saudades. Assim, acabava de velhice, podre por dentro, a meter fastio a toda gente. Se então o levasse o diabo, não haviam de faltar lamúrias e lágrimas naquela casa. Agora, lia nos olhos de todos o desejo de que partisse o mais depressa possível para dar lugar a outro... E quem seria o o felizardo, que lhe herdaria o ninho? Quem viria ouvir as longas conversas à lareira, no inverno, quando a chuva escorregava dos beirais e o vento norte soprava? Tanto pensara no filho, no seu Jau, para o render ali! Mas o raio herdara os defeitos da mãe: mau nariz e um poudo de sofreguidão. Não se aguentava com elas ao pé. Lá no abocar e trazer à mão, saíra ao lençol de cima: nem sequer o ovo da educação quebrara. Uns dentinhos de veludo. A alegria que tivera a primeira vez que o viu amarrado junto de sí! Deitou-lhe o canto do olho, e o pequeno parecia uma estátua: teso, esticado, o rabo como uma seta... Nos montes de Queda, lembrava-se bem. Iam a mata-cavalos num rasto, quase sem tomar respiração. A prever já o resultado da correria, tentava deitar água na fervura:
           - Mais devagar, rapaz, mais devagar...
           Mas o demônio tinha os nervos da mãe. Puxava como um dragão pela encosta acima. E ele seguia-o no andamento, a tentar encobrir o estabanado.
           - Calma! Calma!
           Nada! Aquele cheiro arrastava-o, endoidecia-o.
           - Isto não vai a matar, homem de Deus...
           Até que chegaram perto do bando. Fez-lhe sinal, estacou, e o garoto ficou-se também. Mas, as perdizes saltavam e, quando o dono chegou, deu com o nariz no sedeiro. À noite, uma grade às costas, coisaá que não acontecia há anos. E ao cabo de mais três ou quatro dias de experiência, o doutor deu-o a um aldeagante de Jurlais. Viera vê-lo uma vez, pelo S. Miguel. Pediu-lhe a benção e contou. Até fominha! Depois lá se foi, coitado. E podia estar ali a receber-lhe o último suspiro e a herdar-lhe o ninho de musgo. Sempre era ter alguém da família ao lado. Assim, morria sozinho, tristemente. Nem o ordinário do galo, com quem tanta paciência tivera, nem esse vinha! Andava pelo quinteiro, muito asno, muito parvo, como se mesmo a dois passos não estivesse a acontecer aquela grande desgraça. É certo que também ele, Nero, vira morrer o gato, um sem-número de frangos e galinhas, e cada ano seu porco; sem o menor estremecimento. A verdade acima de tudo. Mas, desta vez, o caso mudava de figura: finava-se um cão, um cão de caça, um navarro legítimo! Ingratidões... Porque, apesar de perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à raposa e à doninha, quando na capoeira parecia a semana santa?! Ele. Ele, Nero que entregava a alma ao Criador, ali, desdentado, com as urinas em sangue, cego duma vista... E o que ele fora na mocidade! Ágil, asado, até mesmo toleirão... Os enganos do mundo!
          Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da goridura na sertão Dantes, seria o bastante para lhe correr a baba pela barbelas abaixo. Agora, só a lembrança de torresmos dava-lhe volta ao estômago. Uma perfeita ruína! Estava podre por dentro e por fora… Raio de vida! E o malandro do galo a galar a galinha! Tivesse ele procedido doutra maneira, quando o parvo era frangote, e já então cheio de proa, e não estaria agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas era feio um navarro dar um apertão num frango. Saiba um homem respeitar-se. Que grande dor de cabeça!... Que peso medonho na arca do peito!... E o corpo mole, sem acção…
          Aí vinha a patroa nova observar o andamento daquilo…
          Fechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o visse como morto…
          Ela chegou-se e ficou silenciosa.
          Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara.
          Chorava. Desceu novamente as pálpebras, feliz.
          E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S. Domingos, lá longe, pareciam já ter saudade das suas patas seguras e delicadas, quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.
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Fonte: TORGA, Miguel. Os bichos. Coimbra: Edições do Autor, 1995.