OS NOSSOS ESCRITOS

TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
POESIA, CONTOS E OUTROS TEXTOS TRABALHADOS NA AULA

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

AS JANELAS


As janelas da casa da minha infância nunca me despertaram grande interesse. Há uma janela no quarto de meus pais e outra na sala de jantar São pequenas, estreitas e ficam muito  altas em relação ao chão, e por isso, mandaram fazer uns estrados em madeira de 25 centímetros de altura por 30 de largura, colocados nos vãos das janelas, para que mais facilmente se chegasse à janela e se pudesse olhar cá para fora. As janelas não são airosas nem alegres, e por isso, a luz que por elas entra não é muito forte, o que dá às duas divisões um ar triste e pouco iluminado.  
Quando queremos ver algo que se passa na rua, temos que subir para o estrado, e de cima deste, podemos então, olhar a rua. Isso, sempre fez que eu nunca gostasse daquelas janelas. De dentro para fora, quando estamos sentados à camilha não vemos nada do que se passa lá fora. Se ouvimos algum barulho diferente, então, lá temos que subir para o estrado, abrir a janela e espreitar lá para fora. De fora para dentro, vive-se a mesma situação, como são muito altas, ninguém pode vir e espreitar à janela, não se vê nada cá para dentro.
Quando eu era muito pequena, gostava de brincar com as minhas bonecas no estrado da janela da casa de jantar, sentava-me ali e passava algum tempo entretida a brincar, mas não muito tempo, porque aquele lugar não tinha sol e eu sentia-o um espaço escuro e fechado...
Aos Domingos, as amigas ou as primas da minha mãe vinham lanchar com ela, então depois do lanche, nas tardes sem chuva, punham-se à janela, onde só cabem duas pessoas, e por isso quando era mais gente, tinham que fazer à vez. Lembro-me de vê-las com os seus melhores vestidos, muito bem penteadas e algumas delas, até se atreviam a pôr um pouco de “rouge” ou de pó-de-arroz, mas nunca pintavam os lábios, pois isso não era de “bom tom” numa senhora casada.
Quando eu tinha os meus cinco ou seis anos de idade, veio para Casa Branca um casal, o Sr. Escobar que era empregado de escritório do Sr. Martinho Rovisco e a D. Rosinha, uma jovem mulher muito bonita, muito elegante, que vestia muito bem e se arranjava como uma senhora da cidade. Penteava-se com uma linda trança que era o enlevo de toda a gente, tinha uma cara muito bonita que as pinturas ajudavam a realçar. Faziam um casal muito bonito, muito elegante, eram jovens e muito bem dispostos. Tinham um filho, o Sérgio, que era da minha idade. Os meus pais fizeram amizade com eles. Todas as tardes de Domingo, os três vinham para nossa casa, onde lanchavam e jantavam. A minha mãe gostava imenso da companhia da D. Rosinha que era mais evoluída que a maioria das amigas de minha mãe, e por isso lhe dava muitos conselhos sobre as modas daquela estação, cremes para o rosto, e até sugestões para se começarem a pintar... de culinária e sobre a decoração da casa... lembro-me que nessa época a minha mãe começou a dar mais atenção à maneira como se arranjava e começou a usar creme de beleza na cara.
Há um episódio muito engraçado, que ainda hoje é falado aqui em casa. Quando se ia a Lisboa, a viagem era de quatro a cinco horas, na furgoneta de meu pai. Então tínhamos que nos levantar por volta das quatro ou cinco horas da manhã, para se chegar a Lisboa pela manhã. Eu nesse dia não ia, estava a dormir no meu quarto. A minha mãe andava a preparar-se e a arranjar-se para saírem o mais cedo possível. A minha mãe chegou ao meu quarto, com as pressas do costume e pergunta-me: - “Oh filha, onde é que está o creme para a cara?” e eu muito ensonada, disse-lhe: “ Oh mãe, está ali!” e apontei para uma das gavetas do psiché que havia no meu quarto. A minha mãe abre a gaveta e vê outro creme e não o que ela procurava, então muito rapidamente diz: “Oh filha não é este, é Benamor!!!!”  . Sempre que estamos a falar de cremes de beleza, vem esta “história” à baila “ Oh filha é  Benamor!!!” é uma risota, pois vem-nos à memória os dias felizes que vivíamos naquela época, onde os meus pais eram um jovem casal, divertido, muito trabalhadores mas ao mesmo tempo muito divertidos, e eu e o meu irmão éramos duas crianças saudáveis, bem dispostas e muito, muito felizes.
ZUZU


A TITA

Quando eu tinha 2 anos de idade, nasceu o meu irmão.
A Srª Margarida Traquinas foi trabalhar  para  nossa casa nessa altura. Como eu era muito pequenina comecei a chamar-lhe Tita e assim ficou para sempre.
A Tita era uma mulher dos seus 50 anos, cara redonda e sorridente, olhos pequeninos num rosto simpático e rechonchudo, com um carrapito no alto da cabeça, braços muito roliços, de estatura média, mais para o baixo, e toda ela redondinha e pronta para nos aconchegar sempre que eu ou o meu irmão precisávamos dos seus braços.
No quarto do meu irmão havia duas camas, uma para ele e outra para a Tita. Há uma janela que liga este quarto com o meu, e que se mantinha sempre aberta, não só para arejar o quarto que é interior, mas também para que eu sentisse que podia chamá-la sempre que precisava.
Assim, quando eu tinha dor de dentes ou de ouvidos eu chamava a Tita para vir ao meu quarto, para me dar algum medicamento. Quando os sonhos eram maus e acordava assustada com algum pesadêlo chamava a Tita, muito aflita, para que ela viesse dormir comigo. Ela, paciente e disponível, não reclamava pelo facto de a ter tirado do sono reparador e ao meu pedido para se deitar comigo, ela nunca dizia que não. Deitava-se junto de mim, procurava acalmar-me e em poucos segundos estávamos as duas a dormir profundamente. Eu acordava-a do seu sono reparador , após um dia de trabalho intenso. Era a Tita quem cozinhava para todos (cerca de 8 ou 9 pessoas diariamente) quem punha as mesas, quem lavava a louça e quem arrumava tudo, lá em casa. Não me lembro de vê-la sentada durante o dia, andava sempre a lidar, a fazer qualquer coisa. Apenas ao serão ela se sentava ao lume e participava nas conversas da família, pois ela era para nós uma pessoa de família.
O meu avô Perninhas contava anedotas e ela começava a rir, a rir, levantava-se da cadeira onde estava sentada, sempre a rir, a rir à gargalhada e depois começava a dizer:” Ai que vou fazer xi-xi!! Ai que não me aguento!” e zás, ali mesmo, muitas vezes fazia xi-xi, ou então conseguia correr para o quintal e sempre a rir, ia fazer xi-xi no quintal. Nós, que ficávamos na cozinha ríamos a bandeiras despregadas com toda aquela cena hilariante. E o meu avô muito feliz da vida por ter conseguido que toda a audiência risse muito alto com as suas anedotas.
As recordações que tenho dela, são fantásticas. Sempre vi aquela mulher risonha e bem disposta, pronta a dar-nos o lanche, a calçar-nos a vestir-nos para irmos para a escola. Não me lembro de a ver arreliada com as nossas embirrações, com as nossas teimosias de crianças. Nunca lhe ouvi uma palavra mais agressiva ou áspera, pelo contrário, quando a minha mãe me batia ou se zangava comigo por eu ter feito alguma coisa que a minha mãe achava que não estava bem, a Tita ficava muito nervosa por me ver chorar e muitas vezes vinha junto de mim, para me ajudar a acalmar e para eu parar de chorar.
Ia para todo o lado connosco. Assim, quando iamos de férias para a Nazaré, ela ia connosco e aí, apesar de tomar conta da casa e de todos nós, ainda tinha tempo para ir à praia, tomava conta de mim e do meu irmão e brincava connosco de uma maneira divertida e alegre. Um ano, vinhamos nós a chegar da Nazaré, eu, a Tita e mais não sei quem vinhamos na carroçaria da forguneta de meu pai, então quando passávamos junto da casa da sua filha Maria, esta apareceu à porta, e a Tita levantou-se muito agitada, e de braços no ar dizia: “Olha a minha Maria!! Olha a minha Maria!! Oh Maria estamos a chegar!” e gritava para que a filha a visse, então a forguneta fez uma curva e ela caiu em cima dos colchões e da tralha toda que trazíamos de um mês de férias, ficou de pernas para o ar, com as saias todas à cabeça. Foi uma risota e até ela se ria, com o seu riso fácil e alegre.
Conta-se outra “história” muito engraçada da Tita, da qual eu tenho uma vaga ideia de ter acontecido. Os meus pais, a minha tia Maria Zé e as minhas tias Adélia e Marilena foram às festividades de Fátima no dia 13 de Maio, então levaram o meu balde da praia para fazerem xi-xi, pois dormiam todos na carroçaria da forguneta. Durante esses 2 ou 3 dias usaram o balde para as suas necessidades fisiológicas. Quando chegaram a Casa Branca, foram todos jantar e no fim do jantar a Tita pôs a fruta dentro do dito balde em cima da mesa do jantar. A minha mãe muito preocupada disse: “Oh Srª Margarida, nós fizemos aí xi-xi durantes os dias em que estivemos em Fátima!!” e ela muito pronta disse: “ Oh minha senhora não faz mal, está bem lavado, lavei-o na água da louça!!” bem foi uma risota à mesa, que ninguém conseguia parar de rir. Ainda hoje se conta esta história verdadeiramente hilariante.
Uma outra história da Tita é esta; ela e o meu irmão que teria uns 4 ou 5 anos, foram à noite fazer xi-xi ao quintal. Ela baixou-se para fazer xi-xi e saiu um pum. O meu irmão perguntou: “Oh Tita que barulho é este?!” e ela muito rápida respondeu:” É uma motorizada que vai a passar na rua!!”
Muitas e muitas mais histórias haveria para contar desta mulher simples, meiga, que entrou na nossa família para sempre e que nos deixou recordações muito, muito boas.
Deixou-nos quando eu tinha 11 ou 12 anos. Foi tratar da sua mãe, doente e muito velhinha, que não tinha mais ninguém que pudesse tratar dela. Eu ia visitá-la a casa da filha, onde viviam umas 10 pessoas, e lembro-me de vê-la triste, preocupada e com um olhar nostáligo, pois as saudades de nossa casa eram imensas. A casa era muito pobre, não tinha nada de conforto, e a pobreza naquele tempo era muito má, pois não havia reformas nem pensões de velhice. Um dia, fui vê-la e a mãe dela estava muito muito doente, e ela disse-me que a mãe estava muito mal, quase a morrer. Então fomos ao quarto e ouvimos o último suspiro da velhinha. Acabara de morrer. Ela muito triste e muito preocupada comigo, pediu-me que me fosse embora, pois não era ambiente para mim.
A Tita já não voltou para nossa casa, ficou a ajudar a filha Maria que tinha muitos filhos. Quando a Tita saiu de nossa casa, veio para nossa casa a sua neta a Maria Margarida, filha da sua filha Maria que esteve connosco até casar. Foi outro tempo maravilhoso, pois a Maria Margarida trouxe para a nossa casa a irreverência da sua juventude, a sua alegria e boa disposição. Foram anos de muitas alegrias, muitas partidas de Carnaval, muita risota e muita gente nova que entrava e saía de nossa casa, pois ela tinha muitas amigas.

Eu estava uma adolescente muito crescida e desenvolvida. O peito crescia-me todos os dias e a minha mãe não me queria comprar um soutien porque eu ainda era muito miúda para usar soutien!! Eu pedia à minha mãe que me comprasse um porque quando corria me doía o peito. Então a Maria Margarida foi buscar um soutien da minha mãe vestiu-mo e com uma agulha e linha, começou a fazer pregas, e mais pregas, e ajustou-mo ao meu corpo magro de adolescente. Assim eu já podia correr sem que as maminhas chocalhassem e me doessem... a minha mãe não teve outro remédio senão concordar que eu precisava de um soutien...
Zuzu

CORREDOR DA CASA DA AVÓ BÁRBARA

O corredor era comprido, muito comprido mesmo, proporcional ao meu medo do escuro. Saía-se da porta da cozinha e entrava-se no corredor. Tínhamos que ir para a esquerda quando íamos para os quartos, pois à direita ficava a porta do quintal.  Eu ia dormir com a minha avó Bárbara, quando a afilhada, que ia lá dormir com ela, não podia. Não era muitas vezes, mas foram as vezes suficientes para eu ir e achar aquela casa grande e escura, cheia de mistérios, ruídos e sombras; ali,  a noite era passada com sobressaltos, ao contrário da noite tranquila que eu teria se dormisse em casa de meus pais.
Depois do serão muito animado, com muita gente sentada à volta da lareira de casa de meus pais, eu e a minha avó lá íamos muito agarradinhas uma à outra a caminho de sua casa. A minha mãe ficava à porta com o cadeeiro a petróleo na mão, a tentar iluminar alguma parte do caminho. A porta da casa da minha avó via-se da porta da minha casa. A minha mãe esperava que nós entrássemos e metia-se para dentro. Quando chegávamos junto da  porta, a minha avó começava a procurar a chave, uma chave grande, que facilmente se deveria encontrar, mas que nunca estava no bolso onde a minha avó procurava, então corria os bolsos todos e depois dizia: “Ai filha!!! Temos que voltar para trás, temos que ir à casa da tua mãe, pois deixei lá a chave!!!”
Então, eu já cheia de medo e aborrecida com aquela cena que se repetia todos os dias, dizia-lhe: - “ Oh avó, veja lá bem!!! A chave deve estar aí nalgum bolso!!” . A minha avó voltava a procurar e lá estava a chave!! A chave que nos abriria a porta que dava para a loja há muito, muito tempo sem actividade. Nada tinha vida ali,  as prateleiras vazias, as gavetas fechadas e vazias, o balcão sem mais nada em cima, senão o candeeiro a petróleo, com a luz muito muito baixinha, que nos esperava.
Entrávamos e a minha avó subia a luz do candeeiro, pegava-lhe e levantava o braço para dar mais luz, uma luz soturna que projectava sombras fantasmagóricas pelas paredes. Eu ia atrás dela, não muito confiante... e entrávamos no corredor comprido, com portas muito altas e estreitas, pintadas de cinzento escuro. Ao fundo, era a cozinha para onde nos dirigíamos. Atravessar o corredor era uma eternidade.
Quando entrávamos na cozinha, a minha avó pousava o candeeiro na mesa e começava logo a mexer de um lado para o outro. Ia ao fogão aquecer o caldo de farinha de trigo que tinha feito pela manhã, ia à despensa buscar o saco imaculado do pão guardado no armário da despensa, ia à gaveta dos talheres na mesa da cozinha buscar a faca muito areada, que parecia de prata e cortava duas fatias finissimas a todo o comprimento do pão, ia à casa de jantar, ao aparador de pedra mármore buscar a tigela da marmelada, que tinha sido feita no tempo dos marmelos. Eu ia buscar as tigelas ao armário de parede, onde estavam os cântaros e tirava as colheres da gaveta dos talheres. Era um ritual. Tudo feito com muita calma, muita tranquilidade, um silêncio quebrado apenas pelas poucas palavras trocadas entre nós. A minha avó punha o caldo de farinha crua nas tigelas e sentadas tranquilamente, comíamos e bebíamos aquele manjar dos deuses. Depois de comermos, a minha avó pegava no candeeiro e íamos corredor fora, até à última porta, a porta do quarto da minha avó. Havia duas camas, a cama de casal de madeira onde dormia a minha avó e uma caminha pequena em ferro, onde dormia a pessoa que lhe ia fazer companhia durante a noite. A minha avó colocava o candeeiro em cima da cómoda alta, de grande gavetões. Começavamo-nos a despir e as nossas sombras projectavam-se pelas paredes caiadas de branco do quarto, criando um ambiente taciturno. As sombras dançavam na parede branca. Eu vestia a camisa de dormir o mais rápido que podia, para me meter na cama, pois o ambiente não me era muito agradável. A minha avó despia-se calmamente, vestia a camisa de dormir de flanela às florinhas e depois preparava-se para se deitar. Antes, levava o candeeiro, com a chama muito baixinha, para o corredor, onde ficava aceso durante toda a noite, e que dava ao quarto uma luz muito difusa de presença. Sentada na cama, já pronta para se deitar, enrolava um xaile preto, já velho, nos joelhos e com muito cuidado para não o desenrolar, metia-se entre os lençóis e cobertores. Por vezes, ainda punha outro xaile velho nos ombros e depois então, com muito cuidado é que se deitava. Eu admirava da minha cama, aquele ritual diário do deitar, pois em minha casa ninguém tinha problemas de dores nos joelhos nem frio nos ombros, e por isso, todos nos deitávamos sem grandes preparos.
De vez em quando, chegava ao quarto um som cavo e difuso, que me assustava e que a minha avó imediatamente dizia: “ São as betas da prima Maria Ezequiel a raspar no chão. O ti Manel deve estar a dar-lhe de comer!!”. Outras vezes, ouviam-se passos muito próximo da janela, eram os homens que saíam do lagar no turno da meia-noite e outros que iam entrar no turno seguinte. Os passos ecoavam no quarto muito nítidos e sonoros, por vezes, ouviam-se  vozes abafadas, tosses cavernosas e o pigarro nas gargantas do tabaco de onça.
Naquele quarto não nos sentíamos isolados do mundo, pois ruídos vindos de todos os lados, emprestavam ao ambiente uma aura de mistério, de medo e ao mesmo tempo de companhia.



A PORTA DE ENTRADA DA CASA

A porta de entrada da casa onde vivi desde um ano de idade até à minha adolescência é uma porta em madeira, envernizada, de duas partes, que abrem ao meio. Tem um postigo de cada lado, com postigos de vidro, que se podem abrir nos dias quentes de verão ou quando queríamos saber quem é que nos estava a bater à porta, a horas tardias. Os postigos são protegidos com grades em ferro forjado que lhe dão uma certa majestade  Por cima, tem uma “bandeira” com uma grade em ferro forjado, por onde entra a luz do sol .
Há noite, os ferrolhos de cima e de baixo são puxados para que haja segurança, e nos sintamos seguros dentro da casa.
A fechadura é já de pique-porte. Por isso a chave é uma chave pequena, que abre com alguma dificuldade a porta. Tem que se dar um certo jeito, para que a fechadura se abra, sempre a conheci assim...
Quando alguém quer entrar em casa, bate num batente em forma de “mãozinha”, cujas pancadas ecoam por toda a casa.
Não é uma porta muito larga, até posso dizer que é estreita, pois quando queremos passar, de verão ainda se abre razoavelmente, mas de Inverno, como empena, fica uma fresta por onde temos que nos esgueirar e apertar para podermos entrar ou sair da casa.
Esta  porta da casa dos meus pais só era usada de manhã muito cedo, à noite ou durante o fim-de-semana, pois todos as pessoas  que queriam entrar ou sair da casa iam pela porta da loja, que estava sempre aberta, desde as 9 horas da manhã até às 21 horas, hora a que se fechava definitivamente a porta da loja, depois de se varrer e se lavar o chão.
Logo muito cedo, pelas 7 horas da manhã, batia a leiteira à porta, e a minha Tita ia abrir e receber o leite no fervedor; o leite era transportado num cântaro de lata e era medido com uma das medidas também de lata que a leiteira transportava presas umas às outras por um cordel. Ela enchia a medida, que normalmente era a de 1 litro, e com muito cuidado para não entornar uma gota sequer, vertia o leite para dentro do fervedor de alumínio, que era enorme, devia levar 1,5 litro ou 2 litros, pois como éramos muitos lá em casa, sempre gastámos bastante leite. Por vezes, as vacas não davam tanto leite como era habitual e a Srª Maria Chica só nos dispensava ¾ de litro, para grande arrelia da minha mãe, que queria que todos nós bebêssemos um copo de leite ao pequeno-almoço. O leite era muito forte, tinha sempre muita nata, e por mais que se passasse com o passador, passava sempre para a caneca alguma gordura que sempre me agoniou imenso, ainda hoje detesto a nata do leite.
A porta tem uma caixa para o correio, com uma tampa em ferro que protege a caixa de madeira para onde caem as cartas, quando o carteiro as enfiava na ranhura da caixa de correio. A maioria das vezes, o carteiro ia entregar a correspondência à loja, pois como esta estava aberta e havia sempre alguém para recebê-lo, a minha mãe ou um empregado, o correio era entregue em mão.
A soleira ou portado, tinha uma pedra mármore branquíssima, que era esfregada todos os dias, assim como a rua era varrida todos ops dias, logo pela manhã. A pedras com o uso excessivo começou a ficar desgastada e a fazer uma grande curva por onde entrava muito pó; então, a minha mãe teve a ideia de colocar por cima dessa pedra uma outra pedra mármore e assim ficaram duas pedras em cima uma da outra o que obrigou o portado a subir. Quando vou a entrar ou a sair esbarro sempre nas pedras, pois no meu inconsciente ainda só lá se encontra a primitiva pedra mármore branquíssima  Fico sempre irritada quando tenho que passar por lá, pois para além de esbarrar na pedra, também a porta não se abre completamente por estar empenada e é com algum esforço que passamos pelo espaço que a porta nos deixa abrir.
Está velha, tudo está velho, a porta, a casa e até os meus pais que eu recordo com imensa saudade ainda jovens, à porta da rua a verem-me a mim e ao meu irmão a andar de bicicleta e a brincar com os amigos e vizinhos da rua. Como eu me lembro da alegria no interior da casa, quando se ouviam as pancadas da “mãozinha” e sabíamos que vinham a chegar os tios e as primas de Estremoz. Os carros ficavam do outro lado da rua, no recanto que ainda hoje lá existe, junto à casa do prima Maria Inácia, e nós íamos numa enorme excitação abrir a porta, às visitas que vinha almoçar, lanchar ou simplesmente passar a tarde, que terminava sempre com um lanche na mesa de pedra mármore do alpendre ou do quintal.

Quando eu era pequena, adorava andar descalça no alcatrão a escaladar da rua, então descalçava as sandálias, colocava-as atrás da porta e lá ia eu toda contente jogar ao avião, á apanhada ou ao às 5 pedrinhas . Andar descalça dava-me uma enorme sensação de liberdade. Quando a minha mãe via as sandálias atrás da porta, chamava-me muito zangada  e alguma vezes, apanhei no rabo, por ter aquela mania de me descalçar. No verão, o chão das diversas dependências da casa era de cimento vermelho, de mosaicos por isso era muito fresco, eu adorava andar descalça, mas nunca me deixavam porque podia ficar com anginas. A minha vontade de andar descalça levou-me muitas vezes a levar uns sopapos da minha mãe, que tinha uma verdadeira paranóia quando me via descalça, pois segundo ela podíamo-nos constipar. Fui de tal maneira repreendida que hoje não sei andar descalça em casa. Mal tomo banho enfio logo uns chinelos e quando me levanto da cama tenho logo ali uns chinelos para calçar, mas descalça é que eu não sou capaz de andar!!!!
Zuzu

RITA, MULHER DE CORAGEM E FORÇA

Vitalino e Amélia
Rita tem 85 anos. Olha-se no espelho e não aceita a velhice; está lúcida e faladora como sempre. O seu corpo encolheu quase 50 centímetros;  a mulher elegante, esbelta e magra que sempre foi, tornou-se numa velhinha de costas encurvadas, muito enrolada, com enorme dificuldade em chegar a tudo que esteja a mais de meio metro dos seus braços. Todos os movimentos  diários que é obrigada a fazer, como pentear-se, vestir-se, tomar banho,  limpar-se, vestir os collants e calçar os chinelos tudo isso é feito com enorme sofrimento, esforço  e dificuldade. As pernas fracas não a deixam caminhar nem passear como sempre gostou. Olha-se no espelho e questiona-se como é que chegou a este ponto!? Como é que em pleno século XXI, ninguém descobriu ou não houve um tratamento para que isto não lhe acontecesse a ela!!! Ela  que tanto gostava da sua figura bonita,  de grandes olhos meigos, rosto perfeito, na boca de lindos dentes brancos e direitos, o sorriso inconfundível sereno, meigo ...
Os desgostos ao longo da sua vida, tão em quantidade quanto as alegrias ( a falência e a necessidade de toda a família partir da aldeia para Lisboa, procurar uma novo modo de vida, a morte do sogro, a morte da sogra, a morte da mãe, a ida do filho para a guerra do ultramar, a morte da neta) , foram-se alojando em cima das suas costas. Camada a camada foram carregando, carregando, até que a tornaram numa velhinha encolhida, pequenina, sem um resquício do que foi Rita, que sempre teve vaidade na sua esbelta figura.
Rita nasceu no seio de uma família de comerciantes, onde não havia dificuldades económicas, pois o pai sempre procurou dar-lhes todo o conforto e bem estar que necessitavam. Mas, com oito anos, ficou orfã de pai. Quando o pai morreu com 38 anos,  a mãe já tinha tido sete gravidezes e estava grávida de 5 meses. Quando a bébé nasceu ficaram a viver na grande e acolhedora  casa a mãe, a Rita e mais 4 irmãos ( dois irmãos tinham morrido antes da morte do pai, uma bébé com ano e meio e outro à nascença). Ela era a mais velha, por isso, mal acabou a instrução primária, ficou em casa onde ajudava com maneiras de menina crescida, nas lides domésticas e na loja.
A família sempre tinha vivido com os ganhos do estabelecimento comercial que o pai explorava, tinham o depósito do tabaco que fornecia toda a aldeia e os montes vizinhos; na loja vendia-se de tudo, desde os principais bens de consumo, fazendas, roupa interior, calçado, petróleo, materiais de construção como pregos, ferramentas e todos as alfaias agrícolas, de que os trabalhadores rurais precisavam para trabalhar no campo, enxadas, foices, sachos, chapéus de palha, etc. etc... Naquela loja fornecida com mercadorias encomendadas aos caixeiros viajantes, das casas comerciais das principais cidades, os clientes podiam encontrar tudo o que necessitavam, pois vendia-se de tudo, como era hábito na província.
Depois da morte do pai, Rita sabia que a vida nunca mais seria a mesma, pois era o pai quem orientava os negócios, quem comprava e vendia e tinha um grande espírito empreendedor. Era um homem que tinha ambições, que sabia que a vida naquela pequena aldeia onde a maioria da população era formada por gente analfabeta, que trabalhava nos campos, de pequenos seareiros e meia dúzia de homens ricos, que davam trabalho nas suas herdades à grande maioria da população, não era a vida que ele desejava para os seus filhos. Muitas vezes dizia para a mãe de Rita que queria trabalhar muito, para poder ter dinheiro afim de dar um curso aos filhos; assim os filhos poderiam sair da aldeia, para irem trabalhar nas profissões que escolhessem, para terem uma vida futura mais equilibrada e desafogada. Mas quando lhe surgiu aquele acidente vascular, tanto ele como a mulher começaram a perder as esperanças de que isso pudesse vir a acontecer.
Estávamos em 1938, início da 2ª Guerra Mundial. Depois da morte do pai, a mãe era o pilar da casa. Cuidou, tratou e educou os filhos o melhor que pôde e soube. Deu-lhes muito amor e muito carinho, e ao mesmo tempo uma educação rígida. Mas aqueles tempos eram tempos difíceis. A mãe começou a não poder encomendar e comprar tanta mercadoria como no tempo do pai. As prateleiras da loja começaram a ficar mais vazias, os fregueses iam comprar a outro lado, e aqueles que continuavam fiéis compravam muito pouco e muitas vezes fiado. Pouco a pouco, a família começou a sentir algumas dificuldades. Despediram a criada que tinham a tempo inteiro, a dormir e a comer, pois Rita já estava crescidinha o suficiente para tomar conta dos irmãos e da casa, enquanto a mãe ficava a trabalhar na loja. Os irmãos vinham da escola e ajudavam a mãe na loja. Assim, iam vivendo e crescendo...
Quando tinha 12 anos, Rita pediu à mãe que a deixasse ir tirar o corte de costura, depois de muita insistência dela,  a mãe deixou, mas a mãe foi criticada pela família, por Rita ser ainda muito nova para tamanha responsabilidade. Mas a sua força de vontade, a sua capacidade de aprender foram mais fortes e com 14 anos Rita já costurava para toda a família. Fazia os vestidos, as saias, as combinações, os casacos compridos tanto para a mãe como para as irmãs; para os irmãos fazia-lhes as camisas, os pijamas, as calças que eram cortadas no alfaiate e cozidas por ela, os casacos. Começou também a fazer camisolas de malha para todos lá de casa. Aprendeu a cozinhar aos poucos foi-se tornando numa pequena dona de casa.  Rita cresceu e tornou-se numa mulherzinha muito responsável, era muito desenvolvida fisica e intelectualmente para a idade e quando a mãe tinha momentos de desânimo, pois a vida não estava a ser nada fácil, ela sempre lhe dava coragem e força para continuar.
Quando tinha 12 anos começou a namoriscar o rapaz que mais tarde foi o seu marido. Quando a mãe de Rita desconfiava que ela estava à porta a espreitar o namorado, mandava-a imediatamente para dentro e muitas vezes lhe bateu, por ela “andar de cabeça no ar!” e começar a pensar “em namoro” ainda tão nova!.
 Como a mãe era viúva, não saía de casa, ( era assim a vida de uma viúva numa aldeia! ) , então Rita quando queria ir aos bailes tinha que pedir e insistir com a tia Alice para que fosse com ela, pois caso contrário, a mãe não a deixava ir com mais ninguém. Quando havia cinema ou circo na aldeia, Rita ia com os irmãos que já eram crescidos para lhe fazerem companhia. Passear com as amigas era só em dias de festa ou em dias especiais. Todo o tempo era para trabalhar em casa.
Quando Rita tinha 18 anos, a irmã do meio, com 13 anos,  começou a ficar doente. Cada vez estava mais doente. Estava de cama, muito debilitada, muito mal. Rita acompanhou-a  e deu-lhe toda a assistência, até que esta acabou por morrer de tuberculose. Era Rita quem lhe preparava as refeições, quem a tratava, quem lhe dava todo o carinho que a irmã precisava, pois a mãe, depois de tantos desgostos estava muito, mas muito em baixo psicologicamente. Mais uma vez, naquela casa entrou a tristeza, o desânimo, mas todos esses incidentes fizeram com que a família ficasse cada vez mais unida. Os filhos adoravam aquela mãe coragem que tanto sacrificou para que nada lhes faltasse.

Rita, casou com 20 anos. Sabia que a esperava uma vida de trabalho, o marido tinha comércio e para ela estava destinado o trabalho na loja, o trabalho na salsicharia, o criar os dois filhos, o dar assistência à casa e à família, sempre, mas sempre com um lindo sorriso naquela boca de romã, decorada com os seus dentes alvos a sobressaírem do vermelho natural dos belos lábios...
Zuzu