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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

LITANIA PARA O NATAL DE 1967

David Mourão-Ferreira


Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
num sótão num porão numa cave inundada 
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
dentro de um foguetão reduzido a sucata 
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
num presépio de lama e de sangue e de cisco 
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
para ter amanhã a suspeita que existe 
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
vê-lo-emos depois de chicote no templo 
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
e anda já um terror no látego do vento 
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto 
para nos pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira

ELEGIA DE NATAL

Era também de noite Era também Dezembro
Vieram dizer-me que o meu irmão nascera
Já não sei afinal se o recordo ou se penso
que estou a recordá-lo à força de o dizerem

Mas o teu berço foi o primeiro presépio
em que pouco depois o meu olhar pousava
Não era mais real do que existirem prédios
nem menos irreal do que haver madrugadas

Dezembro retornava e nunca soube ao certo
se o intruso era eu se o intrus eras tu
Quase aceitava até que alguém te supusesse
mais do que meu irmão um gémeo de Jesus

Para ti se encenava o palco da surpresa
Entravas no papel de que eu ia descrendo
Mas sabia-me bem salvar a tua crença
E era sempre de noite Era sempre em Dezembro

Entretanto em que mês em que dia é que estamos
Que verdete corrói prédios e madrugadas
De que muro retiro o musgo desses anos
que entre os dedos depois se me desfaz em água

Para onde levaste a criança que foste
Em vez da tua voz que ciprestes são estes
Como dizer Natal se te não vejo hoje
Como dizer Natal agora que morreste

David Mourão-Ferreira

SONETO

E por vezes as noites duram meses
David Mourão-Ferreira
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

LADAÍNHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

David Mourão-Ferreira

Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que hão-de me lembrar de modo menos nítido


Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que só uma voz me evoque a sós consigo


Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que não viva já ninguém meu conhecido


Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que nem vivo esteja um verso deste livro


Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que terei o Nada a sós comigo


Há-de vir um Natal e será o primeiro
Em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro

Em que o Nada retome a cor do infinito