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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

CABEÇA DE CARNEIRO

O Director da Escola do Magistério quando não gostava de uma aluna, que era o meu caso, dizia que deviam ir ser professoras para S. Matias ou Cabeça de Carneiro. Em S. Matias havia um padre que fazia a vida negra às professoras e Cabeça de Carneiro ficava perdida no fim do mundo onde só se chegava indo de burro.
Tanta sorte tive que a profecia se cumpriu e fui mesmo parar a Cabeça de Carneiro. No ano em que fui colocada tinham acabado de abrir uma estrada até à entrada da aldeia onde umas grandes rochas impediam a passagem para ir mais além.
 A aldeia era um atraso de vida com casas de pedra onde apenas se via cal à roda da porta e das janelas. A casa onde fiquei hospedada tinha três divisões: a cozinha com um lume de chão permanentemente aceso para meu deleite e o quarto do casal e dos filhos que dava passagem para o meu quarto.
O sr Chilrito dormia numa esteira na cozinha. Dizia ele que" com uma manta de retalhos e uma esteira de atabua toda a noite um homem sua".
Eu tinha lençóis brancos mas na cama delas eram de um riscado preto e branco mais preto que branco.
O chão do meu quarto era de ladrilho todo debruado de riscas brancas de cal e tinha a cama e uma cómoda. Havia uma janela para a rua e era alegre e com o mínimo de conforto. No outro quarto não me lembro de ter visto mais do que a cama.
Na cozinha por cima da mesa havia uma copeira onde pousava uma enorme caneca de um vidro grosso de piquinhos que estava sempre cheia  e onde todos iam bebendo e tornando a acabar de encher, nunca sendo lavada.
Eu fazia a minha comida e, quando era coisa que levasse mais tempo a cozer como grão ou feijão, deixava à guarda da dona da casa. Um dia, ao chegar mais cedo, vejo-a a deitar mais um pouco de água no feijão do dito copo. Fiquei toda enojada mas pensei que tudo o que comera até ali levara o mesmo tratamento e comi e soube a pouco. Comia com eles à mesa e todos os dias se repetia o mesmo ritual: dizia a mulher com uma enorme tigela à frente: miga Chilrito! E o homem lá migava as sopas enchendo a tigela de alto popo.
O garrafão ficava no chão a seu lada e ia enchendo um único copo, que corria a roda bebendo à vez tanto os pais como a filha adolescente ou o mais pequeno de sete anos apenas.

Toda a gente bebia bem na aldeia e, quando entrava na sala pela manhã, tresandava a aguardente que os miúdos bebiam logo que se levantavam para 'matar o bicho'.
As mulheres frequentavam a venda e enchiam sussessivamente de aguardente garrafas que teriam sido noutra era de anis escarchado e ainda conservavam lá dentro a "arvenzinha". Uma vez vi eu uma rapariga, com um bebe que mal andava,  entrar na venda para comprar a aguardente e, como sobrava da garrafa, pediu um copo que pôs à boca guardando ainda um resto para o filho. Não sei se a criança já estaria habituada mas o que é certo é que desta vez ficou mal e até perdeu o andar.
A colega que me antecedeu era do norte e frequentava a taberna onde também bebia o seu copo de vinho...
Como não havia ainda estrada, para chegar à escola, tinha que andar 4km de burro.
A aldeia era toda construída em cima de rocha e essa colega percorria-a toda de cântaro à cabeça quando ia ao poço. Deviam achar que eu era uma 'menina bem' porque não fazia nada semelhante.
Fui muito bem recebida por toda a gente e todas me convidavam para"ir dar o chá" a casa delas. Todas as pessoas se tratavam entre si por "mana".
Ó mana hoje vem dar o chá na minha casa! Aceitei e lá fui passar o serão. Sentadas ao lume de chão, coisa que eu adorava, vi pôr numa cafeteira que já estava a aquecer, uma enorme quantidade de ervas de várias qualidades que não consegui identificar.
Muita conversa e o chá sem aparecer. Lá para o fim do serão sai a cafeteira do lume com um líquido preto que mais parecia café. Era intragável mas a boa  educação fez-me beber alguns goles. Nunca mais aceitei ir 'dar o chá'...

Um dia a minha mãe resolveu mandar-me uma encomenda pelo correio. Havia um senhor que me ia levantar o ordenado* a Reguengos. Ia de bicicleta e nesse dia prestou-se também a trazer-me a encomenda.
 Estava um calor dos diabos e a lata,que era disso que se tratava, andou toda a tarde ao sol. Tinha dentro umas costeletas panadas que rescendiam como as favas do Eça.
Chegou mesmo à hora do almoço e achei que não devia comer aquele petisco sozinha. Chegaram para todos e adoraram pois nunca tinham comido tal coisa.
Ainda fui para a escola mas pouco tempo lá me demorei e sentada num bacio, com uma bacia à frente, lá me fui desfazendo das malditas costeletas.
O sr Chilrito trabalhava na estrada e pouco depois chegou a casa no mesmo preparo. Passámos os dois uma terrível noite e, quando eu no outro dia me desculpei pelo mal causado, responde-me:
  Não se aflija minha senhora, isto não foi das costeletas! É coisa da lua, olhe que até o meu porco andou na mesma. Os restos das costeletas tinham feito as delícias do bácoro...
Como não havia casa de banho ele toda a noite frequentou o chiqueiro...

Havia na aldeia uma loja e o dono , diziam as pessoas com grande admiração,  até tinha a Lisboa ! Mas o melhor é que ele dizia que tinha aparecido na televisão. Nessa altura ri-me do assunto e só muito tempo depois é soube que a tv, ainda em fase experimental, tinha feito uma sessão suponho que na feira popular, onde apareciam no écran todos os que passavam  à frente das máquinas de filmar. Logo calhou que se encontrasse aquela hora, naquele dia, naquele local ...



Contaram-me que um homem que vivia com a filha de apenas quinze anos, abusava dela. A rapariga dormia em cima de uma arca pois nem cama tinha. Era aí  que o pai a ia buscar e, sob a ameaça de uma arma, a obrigava a deitar-se com ele.
A minha irmã Natália foi algumas vezes passar uns dias comigo e, numa dessas ocasiões,  falou com a rapariga que lhe contou as condições em que vivia e lhe pediu que a livrasse daquele martírio. Condoída, levou-a consigo para Estremoz.
No outro dia de manhã, antes de ir para a escola, batem-me à porta e ali estavam dois guardas armados dizendo que se não pusesse ali a pequena ainda naquele dia teriam de me  levar presa. Perguntei-lhes se tinham conhecimento das condições aviltantes em que ela vivia mas responderam-me que eu não tinha nada com isso e que o pai é que mandava nela e fazia dela o que quisesse. Visto a esta distância isto até parece mentira mas naquele tempo era assim.
Com uma enorme revolta tive que ligar à Natália para que a viesse trazer quanto antes.
Quando fui para a escola nesse dia apareceu-me uma pessoa a dizer que me fosse esconder em casa porque o homem andava armado a ver de mim para me dar um tiro. Não passou de um susto porque, nesse mesmo dia, a Natália veio de taxi trazer a pequena. Poucos dias depois apanhou uma boleia, talvez de algum caixeiro viajante, e por lá se foi perder por Lisboa onde não conhecia ninguém e sem ter um centavo no bolso.
Gostava de saber o seu fim mas não auguro nada de bom.

A aldeia todos os anos se animava pelas festas da Santa Cruz. Era uma manifestação semi profana semi religiosa. Havia uma casa toda forrada com colchas e com o ouro das pessoas da aldeia pendurado. Era a casa onde era guardada a Santa Cruz que era um objeto pesado carregado de ouro.
As duas raparigas que lhe iriam pegar levavam todo o ano a treinar-se levantando em peso com as duas mãos o cântaro quando iam buscar água ao poço. Também tinham de treinar o cântico que era uma ladaínha muito comprida que eu ouvi vezes sem conta à filha dos donos da casa que ia ser uma das mordomas e cantava: levanta a Cruz Madanela...
Faziam uma espécie de duas procissões que levavam à frente cada uma das mordomas, a Madanela com o peito todo coberto de prata, enquanto a outra o levava cheio de ouro. A terra era paupérrima e não sei donde saía tanto ouro.
Ao encontrarem-se as duas procissões, a Cruz era levantada e recebida pela outra tudo acompanhado pelos cânticos estridentes. Nesse momento uns tantos rapazes, os Carabineiros, armados de espingardas davam tiros simultâneos para o ar o que se repetia de tempos a tempos.
Só na aldeia da Venda ali perto assisti a uma festa semelhante e não tenho conhecimento de que se faça em mais algum lugar. Não metia padres e não devia ser do agrado da igreja.

Perto da nossa casa havia uma pequena loja/taberna e a dona era nossa visita assídua. Um dia apareceu-nos com um aspecto diferente do habitual. Vinha com muitas queixas e às minhas perguntas diz-me: aí mana lavei hoje a cabeça e fiquei doente. Não estava habituada porque há muito tempo que não a lavava. Nem sou capaz de me pentear. Trazia os cabelos escorridos até ao rabo pois costumava enrolá-los num enorme troço. Quando ela falava de muito tempo tratava-se seguramente de alguns meses...
Estive cerca de cinco ou seis meses naquela terra e sempre a vi com a mesma saia sem fecho e apertada  com um alfinete dama.
Uma vez levei um boné de orelhas para o gaiato da casa que era meu aluno e nunca mais o tirou da cabeça dormindo sempre com ele.
O senhor Coimbra, um caixeiro viajante de Estremoz, uma vez que por lá passou, disse- me muito admirado de me ver por ali:
Como pôde vir parar a um ermo destes? No meu trabalho conheço muito do país mas nunca estive numa terra tão atrasada como esta. Deve estar a cumprir alguma pena...
Gostei de estar em Cabeça de Carneiro e, apesar de estar lá pouco tempo, criei laços de amizade com toda a gente.
Muitos anos depois voltei à aldeia que estava completamente mudada. Grandes casas, ruas onde os carros podiam andar,  mais comércios. Toda a gente se lembrava de mim e fizeram-me uma grande recepção. Convidaram-me logo para a festa que teria lugar pouco depois. Uma senhora fizera uma promessa e pelas próprias mãos construira uma espécie de capela onde era agora guardada a Santa Cruz com mais dignidade.
Até hoje nunca mais lá voltei mas gostava de ter notícias daquela gente tão simpática.


-Milena Falcato