OS NOSSOS ESCRITOS

TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
POESIA, CONTOS E OUTROS TEXTOS TRABALHADOS NA AULA

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

COISAS PERDIDAS I



Os meus filhos, os meus padrinhos, os meus brinquedos, os meus livros, o Carlinhos, a casa onde nasci, o meu sonho de prosseguir os estudos, a lista é interminável


Choro inúmeras perdas que fui sofrendo ao longo dos meus oitenta anos mas vou recordar aqui uma que ainda perdura na minha memória.
O meu padrinho beijava o chão que eu pisava, como se costuma dizer. Já a minha madrinha era mais austera e não me dava muito mimo. Devia ser para ela uma boneca que queria trazer muito bem vestida com a cabeça cheia de caracóis para mostrar às amigas. Embora apenas me lembre de alguns castigos diziam-me as pessoas que com ela conviviam que era muito má para mim. Ainda há dias numa visita que fiz a uma prima que vai agora fazer 103 anos e é a única sobrevivente daquela época, ela me recordou isso mesmo.
Custa-me acreditar  mas são muitas pessoas a dizer o mesmo.
Na altura de irem para Angola e me deixarem em casa dos meus pais deu-se um  episódio difícil de acreditar e que de certa maneira prova que as pessoas estavam certas. Queriam levar-com eles mas os meus pais não deixaram.
O meu padrinho sempre me encheu de brinquedos caros e tinha entre muitos outros uma linda boneca que chorava e abria e fechava os olhos e um carrinho de verga com uma capota que se levantava onde eu a levava a passear. Mais uns dois ou três também assim grandes mas que já não me recordo quais seriam faziam as minhas delícias e entravam todos os dias nas minhas brincadeiras solitárias.
Pois o que havia a minha madrinha de se lembrar? Assim que chegou a Luanda,  escreveu-me uma carta, a única em sessenta e tal anos que lá esteve, e dentro vinha uma fotografia: numa espaçosa varanda de madeira na frente da vivenda , lá estava ela sentada numa numa cadeira de baloiço.
À sua frente, estava o carrinho com a minha bela boneca e mais  alguns brinquedos espalhados a seus pés.
Ora quem faz isto a uma criança de seis anos que ainda se debatia com ausência daqueles que eram para todos os efeitos os meus pais, não pode realmente ser pessoa bem formada.
Quando cheguei a casa dos meus pais trouxe, mesmo assim, uma grande quantidade de brinquedos (uma arca de madeira cheia) que fizeram as delícias das minhas irmãs que nunca tinham tido nada daquilo.


-Milena Falcato

O PRIMEIRO AMIGO

CARLINHOS

Éramos 10 irmãos na nossa casa. A minha madrinha, que não podia ter filhos, pediu aos meus pais que me deixassem ir morar com eles. Nunca soube ao certo que idade teria mas devia ser ainda bebé.
Vivi em casa dos meus padrinhos até aos seis anos e meio como filha única muito mimada principalmente pelo meu padrinho. O pior mesmo era ser filha única e não ter companhia para a brincadeira.
A certa altura descobri, duas ou três portas abaixo na minha rua, a única criança que ali morava além de mim. Carlinhos era o seu nome  e ainda hoje o recordo com imensa saudade e uma raiva enorme de o ter deixado morrer sem o tentar rever.
O Carlinhos, um ou dois anos mais velho, tinha um dom especial para inventar brincadeiras que nos habilitavam a uns bons açoites.

História número um :
O pai dele era dentista e precisava de sossego, a mãe não nos queria a atrapalhar na cozinha e,  para nosso deleite,  mandava-nos para o quarto de casal que era a maior divisão da casa e onde podíamos brincar à vontade.
Assim que entrava eu queria logo saber qual era a brincadeira do dia .
Nesse dia, como sempre aliás, já a tinha estudada.
- Hoje vamos brincar aos circos. Ora os circos têm um teto de pano e ele já tinha estudado como o fazer. Tirou a colcha da cama e tentou estendê-la nos quatro ferros mas era pesada e caía. Tirámos as bolas de cobre que encimavam cada um mas escorregava na mesma. Então, com muito esforço, tentámos furar os ferros nos quatro cantos da colcha e acabámos " a obra " com o auxílio duma tesoura...
O que nós nos divertimos! Houve acrobatas, malabaristas, palhaços e muita muita risota que acabou por chamar a atenção da mãe e... calcula-se o que foi !
Cada um para sua casa para lhe ser aplicado o respetivo castigo...
Para nós era igual, porque se repetia todos os dias...

História número dois:
Eu tinha umas lindas tranças que o meu padrinho adorava. A minha madrinha
era grande admiradora da Shirley Temple e do seus  caracóis. Não descansou enquanto não me cortou as tranças e me encheu  a cabeça de caracóis.!
Para melhor os moldar, apartava-me grande parte dos cabelos no cimo da cabeça e, com um gancho que se usava na altura,  enrolava-o todo muito bem fechando depois o gancho a prender todo o rolo.
E foi neste preparo que cheguei a casa do Carlinhos. Logo ali teve a brilhante ideia de irmos brincar aos cabeleireiros.
Foi à cozinha tirar uma toalha que me atou ao pescoço  e uma tesoura que conseguira surripiar.
Com uma mão agarrou no gancho e, com a outra, ainda que com alguma dificuldade, cortou rente todo aquele cabelo que estava preso no gancho. Calculo hoje o susto e desgosto da minha madrinha quando me viu aparecer em casa com uma careca que apanhava todo o cimo da cabeça !
Lá se foi, e da pior maneira, o sonho de ter em casa uma Shirley Temple...

História número três:
Eu tinha brinquedos caros e o meu padrinho já não sabia o que me dar.
Naquele dia fora a Lisboa e trouxera-me uma boneca de cartão muito grosso.
Teria uns 40 cm de altura e  um pedestal em madeira que a mantinha de pé. Os olhos muito grandes mexiam e,  apertando-lhe a barriga, chorava. Tinha depois vestidos, sapatos, chapéus, roupa interior, enfim toda a espécie de acessórios que se possa imaginar.
Mal tive tempo de desembrulhar o presente corri a casa do meu amigo pois naquele dia teríamos um brinquedo que nos manteria activos por muito tempo. Havia muito que vestir e despir à boneca.
Depressa se cansou e surgiu-lhe uma idéia melhor:
- Hoje vamos brincar aos jantarinhos!
Foi buscar uma panela, umas tesouras, umas facas, umas toalhas a fazer de aventais e ali estavam os chefes cozinheiros prontos a começar o dia...
Começou pelo fato que, como era de cartolina ainda que forte, conseguíamos cortar com a tesoura. Com muito trabalho lá conseguimos enfiar tudo em bocadinhos dentro da panela.
Até aqui tudo bem (mal) ! Mas hei-nos chegados à boneca propriamente dita que era muito grossa para a tesoura. Teve que ir buscar uma faca de serrilha e, mesmo assim, foi com um enorme  esforço que juntámos uns três bocados à sopa que já estava na panela. Não sei se chegámos a comer a sopa mas "outra sopa " me esperava em casa e com muita razão...
Ainda me recorda o desgosto de não ter sequer chegado a brincar com a minha linda boneca...
Contando que já se passaram uns 75anos e dada a qualidade do brinquedo, não  deve ter sido nada barato.

-Milena Falcato

A PRIMEIRA VEZ QUE ME PERDI


Em criança não me lembro de alguma vez me ter perdido. Antes de ir para a escola primária só saía de casa acompanhada pelos meus padrinhos esceção apenas para as fugidas a casa do meu amigo Carlinhos que morava a poucos passos da minha casa.
Quando comecei a frequentar a escola, já em casa dos meus pais, ia sempre sozinha embora quase tivesse que atravessar Estremoz. Bem diferente do que acontece agora com as crianças a serem acompanhadas quatro vezes por dia e, maior parte deles, de popó.
Conhecia bem toda a cidade e não havia hipótese de me perder.

Já adulta fui estudar para Évora e, aí sim, inúmeras vezes me perdi. Sempre que me afastava do trajeto habitual, desorientava-me e passava a chatear de minuto a minuto quem por mim passava. Muitas vezes fui parar ao outro extremo da cidade. Ainda hoje, não obstante lá ter passado dois anos,  muitas das vezes que vou a Évora, lá estou eu a perguntar às pessoas como chegar ao local onde quero ir...
Uma vez fui com a Ana Maria Albardeiro a uma ação de formação na Escola do Magistério Primário. Durou mais tempo que o previsto e, quando saímos, já era tarde da noite. Dirigimos-nos para o carro mas, onde estava ele? Nenhuma de nós fazia a menor ideia e ali nos pusémos a andar à toa na esperança de o avistar ou que ele viesse ter com a gente...
Começámos a perguntar a quem passava numa Évora quase deserta àquela hora.
A Ana só dava uma pista: tinha avistado uma palmeira quando estava a estacionar o carro. Lembro-me de termos encontrado um grupo de raparigas que nos indicou um caminho. Fartámo-nos de andar e chegámos por fim à rua indicada e lá se perfilava uma enorme palmeira, mas não era a nossa palmeira!

Em criança não me lembro de alguma vez me ter perdido. Antes de ir para a escola primária só saía de casa acompanhada pelos meus padrinhos esceção apenas para as fugidas a casa do meu amigo Carlinhos que morava a poucos passos da minha casa.
Quando comecei a frequentar a escola, já em casa dos meus pais, ia sempre sozinha embora quase tivesse que atravessar Estremoz. Bem diferente do que acontece agora com as crianças a serem acompanhadas quatro vezes por dia e, maior parte deles, de popó.
Conhecia bem toda a cidade e não havia hipótese de me perder.

Já adulta fui estudar para Évora e, aí sim, inúmeras vezes me perdi. Sempre que me afastava do trajeto habitual, desorientava-me e passava a chatear de minuto a minuto quem por mim passava. Muitas vezes fui parar ao outro extremo da cidade. Ainda hoje, não obstante lá ter passado dois anos,  muitas das vezes que vou a Évora, lá estou eu a perguntar às pessoas como chegar ao local onde quero ir...
Uma vez fui com a Ana Maria Albardeiro a uma ação de formação na Escola do Magistério Primário. Durou mais tempo que o previsto e quando saímos já era tarde da noite. Dirigimos-nos para o carro mas, onde estava ele? Nenhuma de nós fazia a menor ideia e ali nos pusémos a andar à toa na esperança de o avistar ou que ele viesse ter com a gente...
Começámos a perguntar a quem passava numa Évora quase deserta aquela hora.
A Ana só dava uma pista: tinha avistado uma palmeira quando estava a estacionar o carro. Lembro-me de termos encontrado um grupo de raparigas que nos indicou um caminho. Fartámo-nos de andar e chegámos por fim à rua indicada e lá se perfilava uma enorme  palmeira mas,  não era a  nossa  palmeira ...
Cansadas,  já desesperadas, ali ficámos sem saber o que fazer quando por nós passou um carro que,  depois de abrandar,  começou a entrar num portão no fim da rua. Era a nossa última esperança pois já não se via vivalma. Corremos rua fora e chegámos mesmo no momento em que o portão ir ser fechado. Voltamos a dar a nossa única referência mas o senhor, muito amável,  disse-nos que precisava de mais alguma pista. Aí a Ana, espremendo ao máximo os seus neurónios, lembrou que tinha visto no chão umas riscas, talvez nas próprias pedras da calçada. O homem, decerto grande conhecedor da cidade, reconheceu logo o sítio de que falávamos.
Era no outro extremo da cidade e tinha sido noutros tempos a praça. Os riscos no chão seriam as marcações para os tabuleiros. Meteu-nos no carro e ele mesmo nos levou até lá.
Fartámo-nos de agradecer mas, quando a Ana estava ainda estava tentando ligar o motor, avistámos uns faróis que vinham na nossa direção. Era o nosso'amigo' que nos disse ter ficado  muito apoquentado por ter deixado duas meninas sozinhas àquela hora da noite.
Vinha então com uma proposta: tinha uma casa onde recebia raparigas e nós podíamos lá ir dormir e partir depois de manhã. No primeiro instante ainda pensámos que a oferta poderia não ser muito honesta mas, mesmo assim, agradecemos mais uma vez a sua amabilidade.
Pelo caminho, já mais descansadas, reconhecemos a simpatia  e extrema amabilidade deste homem que por duas vezes atravessou a cidade adiando a sua hora de descanso para socorrer duas desconhecidas.
São estas e muitas outras que já me aconteceram  que me fazem ter confiança no ser humano e esperança que o mundo, no futuro, possa ser melhor.


-Milena Falcato

NATAL

24 de Dezembro

Véspera de Natal. Mal posso esperar.
Não sei porque gosto tanto do Natal. Talvez pela ceia, os doces, as prendas.
Cá em casa somos 10 irmãos . Só há prendas muito pequeninas e são só para as meninas.  Este ano somos só 3 que a Natália está em casa do tio Carreço.
Antes de virmos dormir lá alinhámos os sapatos na chaminé.
Avistámos no escritório uma grande caixa de cartão muito bem fechada mas tivemos medo de a abrir.
Subi de má vontade para o quarto com as minhas irmãs e preparo-me para uma noite sem sono.

25 de Dezembro

Nunca me vou esquecer deste Natal.
Depois de uma longa espera, alguma claridade assoma pela janela e diz-me que está a nascer o dia 25. Só aí temos ordem de descer até à cozinha. Acordo as minhas irmãs e precipitamo-nos escada abaixo, atravessamos o quintal (está um frio de rachar e nós em camisa de dormir...) e ali estão estão, alinhados na chaminé, 8 ou 9 sapatos todos com alguma coisa dentro:
Nos sapatos enormes dos meus irmãos há apenas umas cascas de laranja muito enroladinhas ou uns carvões roubados aos tições da lareira.
E nos nossos? Umas miniaturas de tabletes de chocolate num atado apertado por uma fitinha de seda colorida e uns brinquedos que nos enchem os olhos. Estava ali a explicação da caixa mistério. Brinquedos e jogos a que faltavam peças e que vêm da loja do meu tio Chico porque já não têm venda. Mas no meu sapatinho está mais qualquer coisa do que nas minhas irmãs.
O dono da farmácia Costa, que gosta muito de mim, deixou-me uma prenda de Natal.
Perante a inveja das minhas irmãs desembrulhei o pacote e de lá saíu a mais linda boneca que eu já vi.
Não cabia em mim de contente e durante todo o dia não mais a larguei.
Depois do jantar reunimos-nos todos à chaminé à volta do lume de chão. E lá estou eu com a minha prenda de Natal preferida. O quentinho da lareira sabe- me bem, aquece-me as faces. Embora proibida de o fazer, agarro a tenaz para mexer as brasas. Gosto de ver as fagulhas que se levantam logo que lhes chego. A minha mãe ralha, largo a tenaz e levanto-me. Um clarão enorme, chamas azul esverdeadas levantam-se e só após alguns minutos percebo que já não tenho boneca... Era de celulóide e bastaram uns segundos para ser consumida pelas chamas. Choro desesperada . Sei que por muitos anos que ainda viva, nunca mais terei desgosto comparado com este que estou sentindo agora.



-Milena Falcato

A ESCADA

Era bastante perigosa a escada que nos levava à rua. Tinha uns degraus muito altos e uma inclinação que a tornava difícil para minha idade e tamanho. Sempre que a descia ou era acompanhada ou ouvia uma série de recomendações que eu fazia por não ouvir pois já me achava muito crescida para ouvir conselhos.
Por ela descia todos os dias em que me conseguia escapulir para ir brincar com o Carlinhos, meu único amigo, que morava uns metros abaixo da minha casa. Era com grande alegria que galgava os degraus deixando para trás os gritos da madrinha que fosse devagar, que ia cair...
Pior era quando os subia de regresso pois quase sempre me esperavam uns açoites, bem merecidos por sinal porque, muitas vezes a mãe dele já se tinha   adiantado a vir contar à minha madrinha as asneiradas em que tinham terminado as nossas brincadeiras. Muito nos divertíamos nós e que saudades eu guardo do meu amigo Carlinhos...
Eu era sonâmbula e uma noite ouvi como se verdade fosse, a minha madrinha chamar-me e dizendo para me apressar para irmos sair.
Muito obediente desta vez, saí da cama, bem enrolada nos cobertores e dirigi-me para a escada. Ali chegada não existiram degraus e só me lembro de me --encontrar no patinho cá em baixo ainda com os cobertores atrás e os meus padrinhos de roda de mim muito assustados sem saberem como tinha eu ali ido parar. Valeram-me os cobertores que me fizeram escapar a resultados muito sérios ou até à morte. Um galarô que toda a noite cantou e por aqui se ficou a aventura sonambulesca...


-Milena Falcato

O MEU QUARTO

Não seria muito grande e, talvez por isso, sentia-me lá muito aconchegada.
O meu padrinho encomendou a um bom artista de Estremoz a decoração do quarto. Foi assim que eu fiquei com um quarto de sonho muito lindo .
Todas as  paredes ficaram repletas de figuras do Walt Disney em ponto grande. Miquey,  Donaldo e sobrinhos, Pateta, Popey e Margarida e mais alguns que não me lembra passaram a fazer parte das minhas noites.Foram todos os que lá couberam.
Ninguém tinha um quarto tão lindo como o meu!
Mesmo assim havia ocasiões em que eu detestava ficar no quarto. Era na hora da sesta que a minha madrinha me obrigava a dormir. Metia-me na cama e fechava a porta para eu não me escapulir.
Mas a necessidade é mestra de engenho! Depois de alguns minutos de silêncio e quando ela já me julgava ferradinha, abria as portadas da sacada, levava para lá alguns brinquedos e uma vez fora do quarto tornava a fechar as portadas e aí tinha pela frente uma bela tardada de brincadeira. Para melhor os meus vizinhos da frente que já sabiam que àquela hora eu estava em transgressão, metiam-se comigo e ajudavam-me também a passar melhor o tempo. Eu tinha que falar baixo não fosse a minha madrinha ouvir e descobrir a marosca.
   E ali ficava até que chegasse a hora de acordar e tudo era reposto pela ordem de partida:  brinquedos recolhidos, janela fechada e tornava a meter-me na cama até a minha madrinha chegar para me "acordar"...


-Milena Falcato

A CASA DE JANTAR

O coração da casa
Antes da construção do primeiro andar a casa de jantar era na divisão que fica agora debaixo da escada.Tinha três portas. Uma delas, grande e pesada, dava para o quintal e nem sempre estaria fechada pois tinha que dar serventia à cozinha. Vindo da rua, entrava-se primeiro numa pequena casa de entrada que dava diretamente  para a casa de jantar assim como o corredor e tudo isso junto tornava aquela divisão desagasalhada. Não consigo visualizar o teto antes da escada ser feita. Não admira pois pouco tempo lá vivi dado que, nessa altura, estava em casa dos meus padrinhos.
No entanto há uma recordação recorrente quanto a essa 'casa de jantar'.
Como já disse antes, vivi com os meus padrinhos até aos seis anos e meio, altura em que foram para Angola.
Todos os domingos o meu primo Constantino vinha levar-me de visita a casa dos meus pais. Na minha lembrança calhava sempre na hora de almoço. A mesa era enorme para dar assento a uma família numerosa como a nossa. Para além dos meus pais e nove irmãos havia sempre tios ou primos de Casa Branca ou amigos da casa.
Eu entrava e encostava-me timidamente à parede em frente da mesa , agarrava com muita força a mão do meu primo e dali não arredava um passo. É natural que tivesse que ir falar aos presentes mas, na minha imaginação, só me vejo como espetadora duma qualquer mesa de restaurante cheia de pessoas que não me diziam respeito e com as quais eu não tinha nada a ver. Como se ali não conhecesse ninguém. O que eu queria era libertar-me rapidamente daquela situação. Tornava e tornava a apertar a mão do Constantino e a puxá-lo até que atendendo à minha insistência lá começávamos as despedidas e mais uns instantes e estávamos fora e com tempo para ainda dar um passeiozinho antes de me entregar em casa.
Lembro- me que mais tarde tive alguma dificuldade em habituar- me a comer  naquela mesa cheia de gente e até a estar em família. Aquela não era a minha casa e as saudades do meu padrinho doíam ainda. Era uma filha única que de um dia para o outro tinha que aceitar 9 irmãos. Mas as crianças têm um grande poder de adaptação e depressa me senti integrada.
Lembro-me dos almoços de sábado em que as coisa se complicavam. Havia sempre família da Casa Branca: tia  Alice e marido (tinham lá o filho o meu amigo Constantino) , tia Bárbara, primo Perninhas, prima Florência             Marnoto que trazia um problema qualquer a resolver com um advogado e entre mais uns tantos a Maria  Amélia mãe da Zuzu. Era muito divertida mas ficava um pouco intimidada no meio de tanta gente. O Aníbal para a arreliar gritava-lhe lá do seu lugar: ri-te Amélia!!! E logo ela se escangalhava a rir e com ela toda a mesa.
Claro que nem todas as semanas se reunia tanto pessoal mas as refeições sempre foram uma festa. Sempre tivemos liberdade para rir e falar à mesa..
Uma vez que o primeiro andar foi construído, a casa de jantar passou para o quarto dos meus pais que era uma dependência maior. Aí já estava também o meu tio Chico que impunha ou queria impor algum respeito à mesa. Mais dois empregados da oficina que também lá comiam, a costureira, e os genros e noras e filhos que foram sugindo era sempre um banquete. Diz-se que onde comem dois comem três mas muito mais fácil é quando há quinze comerem vinte... Havia sempre comida que chegasse para mais quatro ou cinco.
O meu irmão mais velho andava a estudar em Lisboa e quando vinha gostava de pôr a escrita em dia como se diz e queria silêncio para se fazer ouvir.
  Um dia compraram para a oficina um engenho de furar. A Adélia deu-lhe no goto o nome do objeto e cada vez que eu lho dizia baixinho ou o Armando o mencionava desatava a rir. Tanto riu que ele sai furioso da mesa, agarra-lhe num braço e foi pô-la lá fora no quintal talbez com algum açoite à mistura...
Indiferente ao choro e gritos dela a bater com toda a força na janela, lá continuou tranquilamente a a perorar sobre o 'engenho de furar'...
Este é um episódio entre muitos, muitos outros passados aqui nesta casa de jantar.
Pôr aquela mesa era uma tarefa que levava algum tempo. Trabalhou lá em casa uma rapariga do campo que estava a servir  pela primeira vez. No dia da entrada ao serviço mandou-a a minha mãe pôr a mesa. Quase na hora de almoço a minha mãe vendo que ela nunca mais aparecia, gritou-lhe da cozinha:
-Floripes, já puseste a mesa? Ao que responde de lá:
-Aí senhora nã me entendi com isto. Olhe, eu pus tudo em riba e quem quiser que puxe!
E lá estava em cima da toalha, única tarefa que conseguira finalizar, três ou quatro rimas de pratos, uma grande porção de copos e um enorme monte de talheres à espera de quem os puxasse...
Ali casei eu, a Adélia, a Olga, a Natália, o Quím, o Dâmaso, o Jaime e a minha filha Guida. Nessas alturas a casa de jantar mostrava-se insuficiente e era preciso pôr algumas mesas noutras divisões para acomodar tanta família e convidados.
Que saudades das ceias de Natal e Consoada ali passadas!
Também recordo aquela mesa sempre posta todos os três dias de  Carnaval onde abancavam grupos de mascarados e não só, trazidos pelo Aníbal ou pelo Jaime.
Enfim, esta é realmente a divisão da casa que mais e melhores recordações me traz à memória.


-Milena Falcato

CORREDORES PESSOAIS

Tive alguma dificuldade em escolher a pessoa sobre quem iria escrever tantas foram as que passando pela minha vida muito me marcaram para o bem e para o mal.
Escolhi falar da D. Joana onde me hospedei na minha passagem por Évora.
O meu pai decidiu que as suas três filhas mais novas seriam professoras primárias como as do seu primo Paulo de quem era grande amigo.
Decidiu e não se admitiam dúvidas. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Mesmo assim, resisti até ao fim.
De manhã a minha mãe mandou-me levantar para apanhar o combóio para Évora. Resolvi que não havia de sair da cama e quando ela me quis puxar agarrei a roupa e o colchão e foi tudo parar ao chão.
Não tive mais remédio senão despachar- me para chegar a horas. Durante toda a viagem chorei que me fartei...
Chegada a Évora, saí do combóio e ali estava eu com uma mala quase do meu tamanho e sem fazer a mais pequena ideia onde ficava a casa onde ia ficar.
Mal sabia eu o que me esperava! Na mala tinha metido apenas a roupa indispensável, ( só regressaria no Natal...) e dado que era uma leitora compulsiva, acabei de a encher com livros. Era uma mala enorme, de cartão e ninguém faz uma ideia como pesava. Pus-me a caminho perguntando a quem passava como se ia para a Zona de Urbanização número 1. Muito raramente lá havia alguém que conhecia, talvez por morar para aqueles lados...
Com os livros a mala tinha ficado pesadíssima e não sei como consegui chegar a casa com ela.
A dona da casa, a D. Joana Cabeça dos Reis, era uma senhora de mediana estatura, com o cabelo castanho grisalho apanhado atrás. Não  era bonita mas a sua simpatia extrema fazia parecê-lo. Tinha um rosto para o comprido, queixo ligeiramente lançado para a frente com uma leve barba que nunca cortou. Ao falar tinha um tom algo pretencioso coisa que ela , de todo, não era.
Era mais uma maneira de explicar tudo muito bem explicadinho de uma maneira muito pessoal.
Sempre de preto, dizia que não era luto. Tivera uma filha  de uns sete ou oito anos que foi encontrada pelas irmãs morta na cama. Foi um desgosto que a marcou para sempre embora nunca lhe tenha ouvido uma palavra sobre o assunto.
Era uma pessoa muito especial, com uma imaginação que lhe fazia superar a falta de tudo a que estava habituada desde mobília até utensílios de cozinha .
Estava em Évora provisoriamente apenas para acompanhar as filhas enquanto ali estudavam. A filha mais nova, a Felisberta, ficou em Estremoz a acabar o Colégio e hospedada em nossa casa numa troca proveitosa para ambas.
A Mãe  Joana, como eu carinhosamente lhe chamava, era a mestra do desenrasca. Faltava-lhe rolo da massa para fazer pastéis de massa tenra?Eu faria logo qualquer outra coisa mais simples a substituir mas ela não desistia com facilidade. Uma garrafa resolvia o assunto e foram os pastéis melhores que eu já comi onde a carne do recheio, muito bem temperado, tinha sido cortada à faca à laia de máquina de picados que ficara em Sousel.
Na segunda feira  de Páscoa despovoava-se Évora para se ir comer o borrego ao campo. Logo de manhã fomos acordadas para sair da cama e ir cumprir o ritual. Levou-nos até uma herdade nos arredores. Aí abancámos, toalha no chão, farnel em cima, por enquanto ainda fechado em caixinhas.
Uma volta pela herdade levou-nos a um rebanho de cabras que estava a ser ordenhado. Eu, que detestava leite, vi-me obrigada a provar e ainda hoje conservo na memória o gosto quente e adocicado do leite acabado de ordenhar. Nesse tempo ainda não se falava em febre aftosa...
 Mais tarde, a hora muito desejada do lanche, chegou por fim.
O abrir das caixinhas foi um espetáculo! De lá saíram entre muitos outros petiscos os deliciosos pastelinhos e uns biscoitos de chorar por mais...
E como é que ela os fizera se nem forno tinha ? Nada mais simples : foi a uma mercearia pedir uma lata de bolachas das grandes, fez-lhe uns furos dum lado e doutro,  ligou-os com arames, umas brasas por baixo e aí estava um forno com porta e tudo, pronto para cozer uns bolinhos ou fazer um assado como algumas vezes aconteceu.
Nunca comi tanto e tão bem como naqueles dois anos que lá passei. Era tudo tão saboroso que ninguém podia resistir. Até porque ela não deixaria...
Depois de uma refeição mais que farta, lá vinha o chazinho de folha de limoeiro(nunca mais bebi...) que, dizia ela, era para rebater. Mas, não se podia beber assim um chá sem nada a acompanhar. Então aparecia na mesa umas enormes rodas de um bucho, especialidade trazida de Niza pelo dono da casa.
A mãe Joana sempre foi muito amiga de surpresas e mistérios. Um dia ao sentarmo-nos à mesa estranhámos um grande prato com uma enorme porção de bananas, mas descascadas . Explicação dela : hoje no caixote do lixo  da da governada do menino Eduardinho estavam estas bananas assim descascadas. Aos nossos trejeitos de horror responde muito depressa : não tenham nojo. Estavam assim muito limpinhas em cima dum guardanapo de papel. Sabem que a senhora é um vaso de asseio!  Tanto disse que acabámos por comer todas as bananas.
Alguns meses depois quando já ninguém se lembrava do episódio, surge com um belíssimo licor de banana a acompanhar uns bolinhos que tinha feito.
E foi preciso dar ela uma deixa para recordarmos as bananas da vizinha...
Estas pequenas partidas faziam a sua felicidade.
Perto dali havia uma casa onde estavam hospedadas umas colegas. Quando calhava a ir lá a horas do lanche, ficava estasiada e cheia de inveja pois cada uma tinha em frente uma bandeja com um grande copo de leite com chocolate, (coisa de eu até nem gostava) e um prato com uma enorme fatia de pão cortada a toda a largura de um pão de quilo, barrado com uma farta camada de marmelada. Ora nós não tínhamos aquelas mordomias mas podíamos comer até muito mais do que aquilo pois tínhamos acesso a tudo o que nos apetecesse. Se ela soubesse disto ficaria zangada e com muita razão.
Foi realmente uma mãe para mim e para todas as  que por lá passaram .
Só ela para me fazer passar aqueles dois anos horríveis dum curso que fui forçada a seguir.
Obrigada por tudo Mãe Joana!!!


-Milena Falcato

OS CORREDORES

Quando aos 6 anos e tal fui para casa dos meus pais  ( antes  vivera em casa dos meus padrinhos), já não tinha idade para andar em correrias pelos corredores.  Tínhamos um enorme corredor para onde davam quatro das divisões da casa. Quando os netos se juntavam, aí sim corriam por ali fora até que a avó, que nunca gostou de grandes confusões, os punha a ir correr para a horta onde não faltava espaço. Isto repetia-se todos os domingos em que, casados e solteiros com os filhos atrelados, se juntavam para o almoço e jantar da semana. Era cá uma mesa! Era comum haver dezanove ou vinte pessoas à mesa.
Raros foram os irmãos que ali não se casaram. Os dias que antecediam o casamento eram de grande trabalho e a maior parte dos doces corriam por nossa conta minha, da Adélia e talvez da Olga mas já não me lembro bem.
No dia propriamente dito, a casa, embora enorme, mal continha a família que não era pequena e os convidados. O corredor aí dava uma grande ajuda  para albergar tanta gente principalmente as crianças que não estavam de todo interessadas no banquete. E as corridas e gritos que naquele dia eram permitidos ecoavam pelo corredor fora.
Ao  fundo havia  uma porta que dava para a horta. Por aí nos escapulíamos todos os dias só regressando para as refeições. Logo à entrada   o primeiro tanque, o mais pequeno dos três, onde se lavava a roupa. Aí subíamos para alcançar os paus que sustinham a parreira onde nos balouçávamos .Era o nosso trapézio... Lembro com se fosse hoje a queda que dei , estatelando-me de costas nas lajes que havia por baixo. Ainda hoje me pergunto se não foi essa causa das dores que tenho nas costas. Naqueles tempos nem nos podíamos ir queixar quanto mais tirar radiografias...
Mas estou a afastar-me do assunto que aqui me trouxe.
Voltemos ao corredor: tínhamos um lindo e gordo gato cinzento que entrava em casa sempre que lhe apetecia. Aprendeu a abrir a porta encostando a pata ao batente e, assim não incomodava ninguém... Boas recordações do meu amigo Vencedor...
Lembro também um grande temporal em que o S. Pedro foi mais que generoso a mandar uma chuvada torrencial. Embora a porta estivesse fechada entrou por ela uma enxurrada que não tinha fim. Muitas horas andámos de baldes e pás até darmos a tarefa por terminada . Parecia um rio pelo corredor fora... Não sei porquê mas é uma das coisa relacionadas com aquela porta do fundo que muitas vezes me vem à memória.
Falei do corredor do rés do chão que era o único que existia quando cheguei a casa dos meus pais.
Éramos 10 irmãos, os meus pais e, mais tarde, o meu tio Chico.
A casa tornou-se muito pequena e o meu pai resolveu construir um primeiro andar onde se repetiam todas as divisões do rés do chão.
Lá estava o novo corredor para onde davam todos quartos dos filhos. O dos pais e, mais tarde do tio Chico, estavam à parte , com vista não para o mar mas para a rua. Recordo mais este corredor. Por ele dava entrada no meu quarto todas as noites ou deixando de o ver por muitos dias a fio porque estava doente o que era muito frequente. Como estava no primeiro andar ficava longas horas sozinha...
Dali também chegava aos quartos dos meus irmãos frequentando mais o do fundo que era o do Aníbal e de cuja janela se namorava. O Aníbal tinha uma boa e farta biblioteca de que eu li quase todos os livros. Agora tenho muitas saudades destes corredores e de toda a casa em geral. Dava tudo para lá entrar mas parece que a nova proprietária já esqueceu o jantar que me prometeu quando lhe vendemos a casa. O jantar dispensava-o desde que me deixasse entrar
E ACABOU-SE QUE JÁ SE VAI FAZENDO TARDE!!!

A JANELA


Estive há dias a almoçar em frente da casa onde vivi com os meus pais. Que vontade enorme de bater à porta e entrar... Sei que por dentro sofreu grandes remodelações mas por fora conserva exatamente  o mesmo aspeto. As janelas foram raspadas, deixando ver as madeiras. Que saudades daquelas janelas cada uma me recordando momentos da minha vida por vários motivos.
Cá em baixo a janela da casa de estar. Aí a minha mãe e a costureira
aplicadas à costura que nunca se dava acabada dado que toda a nossa roupa, inclusíve a interior , era feita em casa. Lembro que, ainda com claridade do dia,  já a minha mãe se levantava para fechar as portadas. Era sagrado!
Ao lado a janela do escritório essa sim que me traz grandes recordações ...
Era a janela do namoro. Muitos serões ali passámos em conversas tolas como serão as de todos os namorados aproveitando o tempo de estarmos juntos.
No primeiro andar, outra havia que nós usávamos muito. Era a janela do quarto do tio Chico. Disse que usávamos muito mas era preciso que a minha mãe não estivesse por perto... Do outro lado das Portas de Santo António havia uma travessa onde ficava a casa da D. Belmira que era a matrona de um Bataclã muito frequentado. Por vezes entretínhamos a ver passar a freguesia e já íamos conhecendo alguns mais habituais.  Só isso bastava para minha mãe achar talvez que fosse a nossa perdição. Nunca percebi muito bem que mal nos fazia assomarmos aquela janela. A casa não se conseguia avistar dali e  nunca vi  a D. Belmira ou alguma das suas trabalhadoras...
Do outro lado da casa, dando para o jardim estava o quarto do Sr. Aníbal.
Antes da permissão de namorar no rés do chão, era aqui que, tal Zequinha e Lelé, se gritavam umas palavras que nem sempre seriam ouvidas na perfeição.
Não sei porquê, o meu pai mandou pôr umas ameias por cima dessa janela onde  subia uma trepadeira de florinhas brancas e que  lhe conferia uma certa graça.
Acabei por falar não de uma mas de várias janelas que, de alguma maneira, marcaram a minha adolescência.