OS NOSSOS ESCRITOS

TEXTOS AUTOBIOGRÁFICOS ELABORADOS PELAS ALUNAS DA DISCIPLINA
POESIA ELABORADA PELAS ALUNAS
POESIA, CONTOS E OUTROS TEXTOS TRABALHADOS NA AULA

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

DESAFIO Nº75


A ideia é construir um texto em que a estrutura seja esta:

Frase de 7 palavras

Frase de 2 palavras

Frase de 7 palavras

Frase de 2 palavras

E assim por diante… ( são 8 grupos de 7+2 )
...

A última tem só 5 palavras.

É Outono...
 A chuva cai lá fora com força
É Outono!!!
 Dias cinzentos, tristes, frios, sonolentos, caseiros, aborrecidos
É Outono!!!
 Céu carregado, cor de chumbo, choroso, deprimente
É Outono !!!
 Cá dentro, vidros embaciados, luz acesa, silêncio
É Outono!!!
 Cheira a chuva, a humidade, a bolor
É Outono!!!
Nada para fazer... apenas olhar a chuva
É Outono!!!
 Vou comer batata doce assada no forno
É Outono!!!
Cozo e asso castanhas brilhantes e sadias
É Outono!!!

Tranquilamente, como as castanhas quentinhas....

Zuzu Baleiro

Sou um bule rachado, sou!


Sou um bule rachado, sou! Como não hei-de ser se a megera da empregada da minha dona tão mal sempre me tratou. Aconteceu naquele dia em que, furiosa, me colocou com tão ou tão pouco cuidado em cima da pedra mármore da mesa da cozinha abrindo-me uma racha que me desfigurou para sempre. Mesmo assim continuo a ser o eleito da minha dona!
Só eu e ela, a senhora da casa, sabemos o porquê desta preferência.
Eu, fui-lhe oferecido pelo amor da sua vida, conhecedor de o quanto a sua amada apreciava o cházinho da tarde. A sua paixão não deu em casamento pois os seus pais tinham-lhe destinado outro marido. Nunca a sua mãe percebeu  por que ela tanto adorava o seu bule amarelo, eu, pois não era loiça fina, nem sequer fio dourado me adornava.

Ainda hoje, já mais rachado, vou à mesa levando o chá às suas amigas para grande desespero da Rita.

Felismina Trindade

77 PALAVRAS

Desafio nº6
De dia viam-se muito pouco……………………………Quem diria!

De dia viam-se muito pouco. Os donos do Miúra e da Bonita levavam-nos para pastos diferentes. Como ele adoraria segui-la, poder roçar-se por ela, aquele pêlo tão macio que ele tão bem conhecia quando se encostavam e, assim, dormiam no curral que partilhavam.

Naquele dia tudo foi diferente, nada se passou como habitualmente. 

Que estranho! Que teria acontecido? Aonde os levariam? No último momento ele apercebeu-se do  que os esperava. Estavam à porta do matadouro. Quem diria!   

Felismina Trindade, 68 anos, Estremoz

O Blogue da Zu Baleiro: Escrevendo na sala de aula - poemas

O Blogue da Zu Baleiro: Escrevendo na sala de aula - poemas

O Blogue da Zu Baleiro: Oficina Virtual - Como ler um poema? (Completo)

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O Blogue da Zu Baleiro: Fica a dica de Literatura: Como ler poesia.

O Blogue da Zu Baleiro: Fica a dica de Literatura: Como ler poesia.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

AS ESCOLAS

Estava eu a dar aulas em Cabeça de Carneiro quando pedi a exoneração pela primeira vez. Ia casar-me em 9 de junho e resolvi sair antes disso.
Tinha feito o curso muito contrariada e nunca fora de minha escolha ser professora com tudo o que isso implicava na época de Salazar.
Quem como eu residia na aldeia onde dava escola tinha que receber o padre na sala de aulas, preparar as crianças para a comunhão e, se lá ficava no fim de semana, arranjar uma boa desculpa para não ir à missa e assistir à cerimónia final.
O ensino no tempo do fascismo era todo virado para passar às crianças tudo o que devíamos a Salazar: as estrada, as pontes, a paz, tudo isto veiculado ao mais pequeno pormenor nos manuais escolares. Acima dele unicamente Deus!
 Tornava-se insuportável para mim dar aulas e afirmar coisas em que nem de longe acreditava e contra as quais sempre me havia batido.
Embora gostasse muito de crianças e de ensinar não via a hora de me livrar daquele martírio. E foi o casamento que me salvou.
Com o acordo do Jacinto pedi a exoneração e fiquei em casa. Dei explicações,
muitas delas de graça, porque gostava mesmo de ensinar.
Depois dei aulas de francês e matemática na Telescola dirigida pelo professor Amaro.
O Jorge Simões foi durante uns tempos professor de Educação Visual na Escola Secundária de Estremoz. Quando foi chamado para a tropa resolveu dar o salto para a Bélgica e assim se escapar de ir para a guerra.
A minha cunhada Natália conseguiu convencer-me a substituí-lo e assim me tornei professora de Educação Visual durante três anos. Às tantas apareceu no mini concurso uma rapariga que disse ter o curso da António Arroio. Como eu não tinha tantas habilitações. Foi-me proposto ficar a dar aulas no Ciclo Preparatório o que não aceitei e aí pedi a minha segunda exoneração.
TrtAfinal a menina que me substituíu revelou-se ser uma falsificadora.  Quando teve que apresentar os documentos veio a saber-se que nunca tinha sequer frequentado a Escola António Arroio.
Eu já estava fora e não havia volta a dar.
Entretanto tive a Isabelinha que viveu um ano de sofrimento com tetralogia de Fallot e veio a morrer precisamente no dia de aniversário.
A seguir nasceu o Luís Miguel também ele doente com paralisia cerebral e que a partir dos nove dez anos viveu completamente paralisado numa cama. Morreu com dezoito anos.
Um dia procurou-me o senhor Mota a pedir-me para ir substituir a D. Cacilda, sua mãe , que se reformara. E lá fui eu assumir a responsabilidade das quatro classes da primária no Colégio de S. Joaquim. A D. Cacilda, já muito idosa na altura, ensinava como tinha aprendido nos seus tempos mandando às urtigas o novo programa. Foi uma revolução  naquela sala com um ensino mais moderno, com cartolinas com as letras e as palavras que iam aprendendo espalhadas pelo chão ou papéis recortados ou papel frisado para os trabalhos manuais.
A porta da sala tinha um vidro estrategicamente localizado à altura de quem passava e muitas vezes dei com os olhos do Sr. Mota aterrorizados com toda aquela confusão. Nunca me disse uma palavra de reprovação e tanto gostou que, quando o Colégio fechou, me pediu para eu levar os alunos para minha casa até todos completarem a quarta classe. Entre outros tinha como alunos o Miguel,  o José Luis e o Rui respetivamente o filho e os sobrinhos.
Lá fiz um colégio em casa onde se vieram juntar a Teresinha Peres e a Cristina Maldonado como alunas do pré escolar.
A Teresinha viria a ganhar o segundo prémio do " Natal visto pelas crianças"  com um desenho e colagens apresentado numa folha de jornal. Hoje é professora de desenho fazendo jus aos dotes que já se adivinhavam quando criança.

Antes de Cabeça de Carneiro já tinha passado por outras escolas : Ourada, Glória e Mártires. Penso que a Escola dos Mártires fosse a primeira. Lecionava lá nessa altura a minha cunhada Natália e eu ia substituir uma regente escolar a que chamavam menina.              .
Eu tinha 19 anos, pequenina, com uns 40 kg, parecia bem mais uma menina que outra coisa.
A Natália não esteve com meias medidas: chamou todas as pessoas que ali viviam, os alunos e ali botou discurso.
Que era uma professora como ela e nem queria saber de alguém me chamar de menina! Era a Senhora professora  D. Maria Helena! Nem mais!
Eu estava capaz de me enfiar pelo chão abaixo muito envergonhada até porque o meu feitio não era para aquelas coisas. Bem me importava a mim que me tratassem por menina, por Maria Helena ou por outra qualquer maneira que quisessem...
Proibiu a Maria Felismina e o João Armando de me tratarem por tu como sempre o tinham feito porque agora era Professora!!! Para eles seria a prima Maria Helena! Coitadinhos...
Mas ela era mesmo assim toda virada para estes preconceitos. Já não ouviu os alunos da Mata tratarem-me por tu e pelo meu nome. Ficaria no mínimo bastante escandalizada, coitada.


-Milena Falcato

OBJETO PERDIDO E REENCONTRADO

A minha amiga Ana Maria veio a minha casa na passada quinta feira, coisa que já não acontecia há bastante tempo. Tinha para ela o livro da Papu comprado no dia do lançamento e autografado por ela. Finalmente chegara a altura de lhe dar a prenda que sabia lhe agradaria pois é uma grande leitora.
A Ana tem uma vida que não lhe invejo. Não sei quantas galinhas, pintos, cães, gatos e dois cavalos tudo isto para além de trabalho em casa e as refeições para os filhos, pouco tempo lhe sobra para um dos seus passatempos preferidos, a leitura. o
Mas passemos à visita da Ana. Também ela me trouxe uma prenda. Não sei explicar como fora parar a sua casa um dossier que me pareceu ser da Mina.
Nos anos 2005/06 a minha sobrinha Joana descobriu o blogue da Papu .
Achou-o muito interessante e fez fotocópias para a Mina ver.
São 40 páginas postada em Novembro de 2005 a partir de Londres onde mora. Reli-as agora, saboreei-as e confirmei o que sentira na altura. Estava ali uma escritora que só precisava de ser descoberta por alguém que publicasse a sua escrita. Por mim sempre que tinha alguma pista de pessoa ou editora interessada em publicar obras de gente jovem, avisava-a  Até lhe indiquei vários concursos a que poderia concorrer. Seria com um concurso talvez não indicado por mim que ganharia o prémio Leya que a projetou nacional e internacionalmente.
Acredito que muito se irá ainda falar desta escritora.
Quando a Ana me entregou o dossier fiquei perplexa. Como teria ido parar a sua casa? Nem ela própria o soube dizer.
Embora pertença à minha comadre Mina tive uma das melhores surprezas com este reencontro com a escrita da minha amiguinha Papu. Sabe sempre melhor ler a palavra em papel do que através  da net onde sou visita assídua do seu blogue.
Agradeço à Ana a satisfação que proporcionou.


Para quem estiver interessado:

http://www.papuinlondon .blogspot.com/    (Pensamentos, acontecimentos do dia a dia, estórias,  coisas dos filhos, poesia, etc)

Http://outro-lado-da-lua.blogspot.com/    (poesia)

far far away


-Milena Falcato

FOTOGRAFIA EM MOVIMENTO

Aí os piqueniques dos Falcatos ! A família sempre gostou de se juntar principalmente nas ferias de verão. Os piqueniques eram o melhor pretexto para essas reuniões e, fosse de carroça ou na camioneta do Vitalino, farnel bem fornecido , aí estávamos nós, prontos para um dia bem passado.
O local escolhido era, na maioria das vezes, a herdade do Mouchão.
O dia um pouco enfarruscado, não faz desanimar esta família. Um lenço na cabeça, um casaquinho de malha, carapuço na cabeça das crianças, fazem esquecer que o verão já vai de volta e que seria melhor ficar em casa no aconchego do lar.
Ainda em cima da camioneta estão vários cestos de verga vermelha com duas tampas a abrir por cima muito próprios para estas festanças e algumas alcofas de buinho algarvias. Vêm cheios com vários petiscos que se irão comer pelo dia fora até que o sol se esconda de todo.
Lá encontraremos pastelinhos de bacalhau, costeletas panadas da Maria Emília, carnes cheias produção da Amélia, alface e tomate para as saladas, pão e vinho, muito vinho que as gargantas hão-de vir secas dos passeios a pé que se irão fazer.
A fotografia não mostra nem metade das pessoas que aqui se reuniram.
Alguns aproveitaram para um passeio a pé num reconhecimento daqueles campos tão lindos com o ribeiro lá ao fundo...
Como é o hábito ficaram as mulheres para preparar o almoço para quando chegassem os senhores esfomeados da caminhada. Era assim naquele tempo e ainda hoje perdura...
Hoje trata-se duma favada que elas estão descascando.
A prima Idalina mãe do Vitalino e avó da Zuzu, pôs um pano no colo para proteger a saia. É uma boa pessoa com quem me dou muito bem. O marido, o primo Perninhas é, como se costuma dizer, "unha com carne" com o meu pai.
Muito divertido o primo Perninhas enche uma casa com os seus dito e suas anedotas.
A Maria Amélia que não consegue estar parada descasca batatas. Para quê não percebo, pois se para o almoço temos favas! Ela lá sabe...
Esta minha prima é muito bem disposta e uma fonte inesgotável de anedotas.
A minha tia Alice levantou-se talvez para ir buscar mais umas favas. Muito gorda deve ter alguma dificuldade em se deslocar neste terreno malandamoso.
É a minha segunda mãe e sempre que tenho uns dias de férias lá estou eu em sua casa na Casa Branca. Gosta muito de mim e eu retribuo-lhe esse amor.
A Maria Emília dá a papa à Cristina ao mesmo tempo que observa o trabalho das outras. Deve estar a dizer-lhes: não descasquem tudo que assim que ela comer já aí vou dar uma ajuda. Ou ela não fosse a dona de casa trabalhadora que todos conhecemos
E a pobre da Cristinita olha para a mãe à espera que ela deixe a conversa e lhe meta a colher na boca...
A Leninha esperneia tentando escapar-se do colo da avó Bárbara que não a deixa fugir. Deve querer ir atrás da Guida que já daqui se escapuliu. É mexida esta miúda, não consegue estar sossegada nem um minuto. Parece que tem azougue...
A Leninha é mais pachorrenta mas está sempre a chorar. Ou porque quer o brinquedo da irmã, ou porque o pai não lhe dá a lua, ou por coisa nenhuma.
Já apanhou a fraqueza do pai e tudo lhe pede porque já sabe que quase sempre os seus pedidos são satisfeitos.
Aqui há dias estávamos nós sentados na marquise e pelos vidros entrava-nos em casa uma enorme lua cheia brilhando no escuro da noite.
-Pai, quero aquela bola! -diz ela enroscandosse-lhe no colo. Em vez de lhe explicar que aquilo era a lua e não saía do céu, começou numa demorada explicação, dizendo que era precisa uma escada muito alta para o pai lá chegar e não tinha essa escada. Quanto mais pormenorizava mais ela chorava, e acabou-se a noite com uma birra enorme, gritando sempre que queria a bola.
Mas desta vez era mesmo impossível satisfazer os caprichos desta menina mimada...
A avó Bárbara, minha sogra, é uma pessoa faladora, amiga de contar histórias dos seus tempos que as netas ouvem encantadas. Viúva muito nova ficou com quatro filhos para criar e grávida de outra. Valeu-lhe ter uma mercearia donde foi tirando o suficiente para o sustento da casa.
Muito vaidosa, assim que pousava os sacos vinda de Lisboa ou Casa Branca, seguia logo para a loja para comprar uns sapatos ou algo para vestir...
Para o fim fiquei eu. Como se pode ver estou parada a observar  os outros a trabalhar.
É esta a minha tarefa de eleição. Dar apoio moral a quem trabalha...
Nem sei porque não fui eu passear com os cavalheiros...


-Milena Falcato

CABEÇA DE CARNEIRO

O Director da Escola do Magistério quando não gostava de uma aluna, que era o meu caso, dizia que deviam ir ser professoras para S. Matias ou Cabeça de Carneiro. Em S. Matias havia um padre que fazia a vida negra às professoras e Cabeça de Carneiro ficava perdida no fim do mundo onde só se chegava indo de burro.
Tanta sorte tive que a profecia se cumpriu e fui mesmo parar a Cabeça de Carneiro. No ano em que fui colocada tinham acabado de abrir uma estrada até à entrada da aldeia onde umas grandes rochas impediam a passagem para ir mais além.
 A aldeia era um atraso de vida com casas de pedra onde apenas se via cal à roda da porta e das janelas. A casa onde fiquei hospedada tinha três divisões: a cozinha com um lume de chão permanentemente aceso para meu deleite e o quarto do casal e dos filhos que dava passagem para o meu quarto.
O sr Chilrito dormia numa esteira na cozinha. Dizia ele que" com uma manta de retalhos e uma esteira de atabua toda a noite um homem sua".
Eu tinha lençóis brancos mas na cama delas eram de um riscado preto e branco mais preto que branco.
O chão do meu quarto era de ladrilho todo debruado de riscas brancas de cal e tinha a cama e uma cómoda. Havia uma janela para a rua e era alegre e com o mínimo de conforto. No outro quarto não me lembro de ter visto mais do que a cama.
Na cozinha por cima da mesa havia uma copeira onde pousava uma enorme caneca de um vidro grosso de piquinhos que estava sempre cheia  e onde todos iam bebendo e tornando a acabar de encher, nunca sendo lavada.
Eu fazia a minha comida e, quando era coisa que levasse mais tempo a cozer como grão ou feijão, deixava à guarda da dona da casa. Um dia, ao chegar mais cedo, vejo-a a deitar mais um pouco de água no feijão do dito copo. Fiquei toda enojada mas pensei que tudo o que comera até ali levara o mesmo tratamento e comi e soube a pouco. Comia com eles à mesa e todos os dias se repetia o mesmo ritual: dizia a mulher com uma enorme tigela à frente: miga Chilrito! E o homem lá migava as sopas enchendo a tigela de alto popo.
O garrafão ficava no chão a seu lada e ia enchendo um único copo, que corria a roda bebendo à vez tanto os pais como a filha adolescente ou o mais pequeno de sete anos apenas.

Toda a gente bebia bem na aldeia e, quando entrava na sala pela manhã, tresandava a aguardente que os miúdos bebiam logo que se levantavam para 'matar o bicho'.
As mulheres frequentavam a venda e enchiam sussessivamente de aguardente garrafas que teriam sido noutra era de anis escarchado e ainda conservavam lá dentro a "arvenzinha". Uma vez vi eu uma rapariga, com um bebe que mal andava,  entrar na venda para comprar a aguardente e, como sobrava da garrafa, pediu um copo que pôs à boca guardando ainda um resto para o filho. Não sei se a criança já estaria habituada mas o que é certo é que desta vez ficou mal e até perdeu o andar.
A colega que me antecedeu era do norte e frequentava a taberna onde também bebia o seu copo de vinho...
Como não havia ainda estrada, para chegar à escola, tinha que andar 4km de burro.
A aldeia era toda construída em cima de rocha e essa colega percorria-a toda de cântaro à cabeça quando ia ao poço. Deviam achar que eu era uma 'menina bem' porque não fazia nada semelhante.
Fui muito bem recebida por toda a gente e todas me convidavam para"ir dar o chá" a casa delas. Todas as pessoas se tratavam entre si por "mana".
Ó mana hoje vem dar o chá na minha casa! Aceitei e lá fui passar o serão. Sentadas ao lume de chão, coisa que eu adorava, vi pôr numa cafeteira que já estava a aquecer, uma enorme quantidade de ervas de várias qualidades que não consegui identificar.
Muita conversa e o chá sem aparecer. Lá para o fim do serão sai a cafeteira do lume com um líquido preto que mais parecia café. Era intragável mas a boa  educação fez-me beber alguns goles. Nunca mais aceitei ir 'dar o chá'...

Um dia a minha mãe resolveu mandar-me uma encomenda pelo correio. Havia um senhor que me ia levantar o ordenado* a Reguengos. Ia de bicicleta e nesse dia prestou-se também a trazer-me a encomenda.
 Estava um calor dos diabos e a lata,que era disso que se tratava, andou toda a tarde ao sol. Tinha dentro umas costeletas panadas que rescendiam como as favas do Eça.
Chegou mesmo à hora do almoço e achei que não devia comer aquele petisco sozinha. Chegaram para todos e adoraram pois nunca tinham comido tal coisa.
Ainda fui para a escola mas pouco tempo lá me demorei e sentada num bacio, com uma bacia à frente, lá me fui desfazendo das malditas costeletas.
O sr Chilrito trabalhava na estrada e pouco depois chegou a casa no mesmo preparo. Passámos os dois uma terrível noite e, quando eu no outro dia me desculpei pelo mal causado, responde-me:
  Não se aflija minha senhora, isto não foi das costeletas! É coisa da lua, olhe que até o meu porco andou na mesma. Os restos das costeletas tinham feito as delícias do bácoro...
Como não havia casa de banho ele toda a noite frequentou o chiqueiro...

Havia na aldeia uma loja e o dono , diziam as pessoas com grande admiração,  até tinha a Lisboa ! Mas o melhor é que ele dizia que tinha aparecido na televisão. Nessa altura ri-me do assunto e só muito tempo depois é soube que a tv, ainda em fase experimental, tinha feito uma sessão suponho que na feira popular, onde apareciam no écran todos os que passavam  à frente das máquinas de filmar. Logo calhou que se encontrasse aquela hora, naquele dia, naquele local ...



Contaram-me que um homem que vivia com a filha de apenas quinze anos, abusava dela. A rapariga dormia em cima de uma arca pois nem cama tinha. Era aí  que o pai a ia buscar e, sob a ameaça de uma arma, a obrigava a deitar-se com ele.
A minha irmã Natália foi algumas vezes passar uns dias comigo e, numa dessas ocasiões,  falou com a rapariga que lhe contou as condições em que vivia e lhe pediu que a livrasse daquele martírio. Condoída, levou-a consigo para Estremoz.
No outro dia de manhã, antes de ir para a escola, batem-me à porta e ali estavam dois guardas armados dizendo que se não pusesse ali a pequena ainda naquele dia teriam de me  levar presa. Perguntei-lhes se tinham conhecimento das condições aviltantes em que ela vivia mas responderam-me que eu não tinha nada com isso e que o pai é que mandava nela e fazia dela o que quisesse. Visto a esta distância isto até parece mentira mas naquele tempo era assim.
Com uma enorme revolta tive que ligar à Natália para que a viesse trazer quanto antes.
Quando fui para a escola nesse dia apareceu-me uma pessoa a dizer que me fosse esconder em casa porque o homem andava armado a ver de mim para me dar um tiro. Não passou de um susto porque, nesse mesmo dia, a Natália veio de taxi trazer a pequena. Poucos dias depois apanhou uma boleia, talvez de algum caixeiro viajante, e por lá se foi perder por Lisboa onde não conhecia ninguém e sem ter um centavo no bolso.
Gostava de saber o seu fim mas não auguro nada de bom.

A aldeia todos os anos se animava pelas festas da Santa Cruz. Era uma manifestação semi profana semi religiosa. Havia uma casa toda forrada com colchas e com o ouro das pessoas da aldeia pendurado. Era a casa onde era guardada a Santa Cruz que era um objeto pesado carregado de ouro.
As duas raparigas que lhe iriam pegar levavam todo o ano a treinar-se levantando em peso com as duas mãos o cântaro quando iam buscar água ao poço. Também tinham de treinar o cântico que era uma ladaínha muito comprida que eu ouvi vezes sem conta à filha dos donos da casa que ia ser uma das mordomas e cantava: levanta a Cruz Madanela...
Faziam uma espécie de duas procissões que levavam à frente cada uma das mordomas, a Madanela com o peito todo coberto de prata, enquanto a outra o levava cheio de ouro. A terra era paupérrima e não sei donde saía tanto ouro.
Ao encontrarem-se as duas procissões, a Cruz era levantada e recebida pela outra tudo acompanhado pelos cânticos estridentes. Nesse momento uns tantos rapazes, os Carabineiros, armados de espingardas davam tiros simultâneos para o ar o que se repetia de tempos a tempos.
Só na aldeia da Venda ali perto assisti a uma festa semelhante e não tenho conhecimento de que se faça em mais algum lugar. Não metia padres e não devia ser do agrado da igreja.

Perto da nossa casa havia uma pequena loja/taberna e a dona era nossa visita assídua. Um dia apareceu-nos com um aspecto diferente do habitual. Vinha com muitas queixas e às minhas perguntas diz-me: aí mana lavei hoje a cabeça e fiquei doente. Não estava habituada porque há muito tempo que não a lavava. Nem sou capaz de me pentear. Trazia os cabelos escorridos até ao rabo pois costumava enrolá-los num enorme troço. Quando ela falava de muito tempo tratava-se seguramente de alguns meses...
Estive cerca de cinco ou seis meses naquela terra e sempre a vi com a mesma saia sem fecho e apertada  com um alfinete dama.
Uma vez levei um boné de orelhas para o gaiato da casa que era meu aluno e nunca mais o tirou da cabeça dormindo sempre com ele.
O senhor Coimbra, um caixeiro viajante de Estremoz, uma vez que por lá passou, disse- me muito admirado de me ver por ali:
Como pôde vir parar a um ermo destes? No meu trabalho conheço muito do país mas nunca estive numa terra tão atrasada como esta. Deve estar a cumprir alguma pena...
Gostei de estar em Cabeça de Carneiro e, apesar de estar lá pouco tempo, criei laços de amizade com toda a gente.
Muitos anos depois voltei à aldeia que estava completamente mudada. Grandes casas, ruas onde os carros podiam andar,  mais comércios. Toda a gente se lembrava de mim e fizeram-me uma grande recepção. Convidaram-me logo para a festa que teria lugar pouco depois. Uma senhora fizera uma promessa e pelas próprias mãos construira uma espécie de capela onde era agora guardada a Santa Cruz com mais dignidade.
Até hoje nunca mais lá voltei mas gostava de ter notícias daquela gente tão simpática.


-Milena Falcato